Um processo judicial sob suspeita de ilegalidades, um país dividido ao meio pelo ódio e pela intolerância, uma imprensa tendenciosa, uma república ameaçada. O quadro parece o Brasil deste século XXI, mas era o cenário em que vivia a França no final do século XIX, quando a atitude corajosa de um escritor influenciou de forma decisiva o rumo dos acontecimentos políticos do país.
13 de janeiro de 1898. L’Aurore, um jornal lançado recentemente em Paris – havia sido inaugurado quatro meses antes, em setembro de 1897 −, estampa em sua primeira página um artigo que entraria para a história. A simples leitura do título, “Eu Acuso…!” (“J’accuse…!”), já era indicativa da imensa polêmica que o texto provocaria. E era exatamente esta a intenção do autor, o já célebre escritor Émile Zola: colocar mais lenha na fogueira que incendiava a França havia quase quatro anos, mergulhada numa crise política que parecia não ter fim desencadeada pelo controverso processo militar-judicial que resultou na prisão, por alta traição, do capitão Alfred Dreyfus.
O chamado caso Dreyfus (l’affaire Dreyfus) foi um acontecimento que marcou profundamente a França na virada do século XIX para o XX, com consequências que repercutiram no mundo ocidental.
Em outubro de 1894, o capitão Dreyfus foi preso sob a acusação de repassar segredos militares à Alemanha, país que havia humilhado a França nos campos de batalha, na guerra de 1870. A prova usada contra o capitão era um relatório dirigido ao então adido militar alemão na França, Maximilien von Schwartzkoppen, com detalhes de novos armamentos desenvolvidos pelo exército francês.
A fragilidade da prova contra Dreyfus era evidente. Não havia a menor semelhança entre a letra do capitão e a do relatório. Mesmo assim, três dos cinco peritos arrolados pelo Ministério da Guerra atribuíram a autoria do documento a Dreyfus. Na verdade, o que depunha contra o oficial era o fato de ele ser judeu e de ter nascido na Alsácia, região que a França perdera para a Alemanha na derrota de 1870 e que voltaria a ser incorporada ao território francês após a Primeira Guerra Mundial.
Dreyfus foi julgado por um Conselho de Guerra que praticamente impediu sua defesa. Porém, apesar do clima desfavorável ao capitão, as acusações contra ele eram muito frágeis. A fim de evitar uma possível absolvição do oficial, que “desmoralizaria” o Exército, agentes do serviço secreto falsificaram um dossiê incriminando Dreyfus. O documento foi mostrado secretamente aos juízes que compunham o Conselho de Guerra. Os magistrados, além de compactuar com essa manobra claramente ilegal – a defesa do acusado, em momento algum, tomou conhecimento do dossiê –, basearem-se nesse documento forjado para retirar os elementos que faltavam para confirmar a culpabilidade de Dreyfus.
O capitão foi condenado à prisão perpétua e transferido para o campo de prisioneiros que a França mantinha na Ilha do Diabo, na Guiana. Antes de ser deportado, em 5 de janeiro de 1895, o oficial foi submetido à mais ultrajante provação que um militar poderia sofrer: a degradação em praça pública, sob as vaias e as ameaças de uma multidão enfurecida que gritava “morte ao judeu traidor”.
Eu acuso
Na época da condenação de Dreyfus, a opinião pública na França estava majoritariamente convencida da culpa do capitão. Apenas um círculo muito restrito de militares tinha conhecimento das flagrantes irregularidades do processo que o condenou. Para a maioria da população francesa, incluindo o escritor Émile Zola, o oficial judeu era culpado, havia recebido um tratamento mais do que merecido e ponto final.
No entanto, o trabalho incansável de Mathieu Dreyfus, irmão de Dreyfus, para comprovar a inocência do capitão, foi angariando, ao poucos, a simpatia de mais pessoas para a causa, como o jornalista Bernard Lazare, que teve uma forte atuação em favor do acusado, e o líder socialista Jean Jaurès. A adesão de Zola à causa dreyfusista só ocorreu no final de outubro de 1897, quando tomou conhecimento de que o Exército francês não só estava a par da inocência de Dreyfus o tempo todo, como havia vários meses tinha descoberto o verdadeiro autor do relatório enviado ao embaixador alemão: o oficial Esterhazy.
O engajamento de Zola foi tardio, mas teve a força de um furacão. Zola passou a publicar uma série de artigos sobre o affaire no jornal Le Figaro, nos quais defendia a inocência de Dreyfus. Nesse meio tempo, começaram a aparecer várias acusações na imprensa contra Esterhazy, incluindo até a publicação de uma carta do oficial traidor a uma de suas amantes, nas quais ele diz que não faria mal a um cachorrinho, mas mandaria matar, “com prazer”, 100 mil franceses. Em um julgamento que beirou o farsesco, tamanha a parcialidade dos juízes, Esterhazy foi absolvido e o seu principal acusador, o coronel Picquart, um militar obstinado pela busca da verdade, condenado à prisão.
A sentença absurda recebida por Picquart foi a gota d’água para Zola, levando-o a tomar uma atitude mais radical. Já pressentindo que o julgamento de Esterhazy seria uma farsa, ele tinha começado a trabalhar, dias antes, no seu famoso artigo. A intenção inicial era publicá-lo em formato de brochura, uma vez que Le Figaro havia suspendido a publicação dos textos do autor em razão do boicote que o jornal vinha sofrendo por parte dos seus leitores, a maioria antidreyfusista, que estavam cancelando suas assinaturas em protesto contra a campanha de Zola em favor de Dreyfus.
Depois de uma conversa com Clemenceau, diretor de L’Aurore, Zola decidiu publicar o texto no novo diário parisiense. O título – “Eu Acuso…!” – foi sugerido por Clemenceau, com base na parte final do artigo, em que Zola denuncia, utilizando repetidamente a fórmula “Eu acuso” antes do nome de cada um deles, os militares e os agentes do governo que conspiraram para a condenação de Dreyfus, mesmo sabendo-o inocente. O texto foi escrito como se fosse uma carta endereçada ao então presidente da França, Félix Faure.
Émile Zola tinha plena consciência dos riscos que corria em decorrência do seu gesto. “Ao fazer essas acusações, não ignoro que me inscrevo nos artigos 30 e 31 da lei da imprensa de 19 de junho de 1881, que pune os delitos de difamação. E é voluntariamente que me exponho […]. Que ousem, portanto, me levar ao tribunal do júri e que a investigação aconteça em pleno dia”, desafia o escritor, na conclusão do seu artigo. De fato, Zola acabou sendo condenado pela Justiça francesa a um ano de prisão mais 3 mil francos de multa. Convencido pelos amigos, exilou-se durante 11 meses na Inglaterra para escapar da execução da pena.
Duas Franças
Quando Zola publicou “Eu Acuso…!”, não estava provocando apenas um terremoto na sua confortável carreira literária, como autor de obras já consideradas clássicas e forte candidato a uma vaga na Academia Francesa. A França inteira tremeu com as palavras inflamadas do libelo que saíra no L’Aurore. Como afirma o historiador Jean-Denis Bredin, Zola foi o primeiro a fazer da luta pela revisão do processo “uma causa moral e um dever republicano”. Antes dele, só outro grande homem de letras francês, Voltaire, no seu Tratado sobre a Tolerância, tinha empunhado sua pena para clamar contra outro escandaloso processo judicial ocorrido mais de cem anos antes, que resultara na condenação de um inocente − o caso Jean Calas, em que um comerciante adepto da fé protestante foi sentenciado injustamente à morte pelo homicídio do próprio filho, provando-se depois que todas as acusações que pesavam contra o réu eram completamente infundadas, sustentadas apenas na intolerância religiosa dos seus algozes.
Os 500 mil exemplares de L’Aurore que circularam pelas ruas de Paris no dia 13 de janeiro de 1898, estampando o artigo de Zola na primeira página, contribuíram também para acentuar ainda mais o cenário de ódio e radicalização que dividia a França em dois blocos completamente opostos. De um lado, os dreyfusistas, que reuniam não só os partidários de Dreyfus, mas todos aqueles que partilhavam ideais semelhantes: a defesa da igualdade, da justiça social, das liberdades individuais, de um Estado laico, pela integração dos povos, pela democracia, enfim. De outro, os que queriam ver Dreyfus apodrecer na prisão, pouco importando se ele era inocente ou não – já que as falhas do processo eram tão gritantes que qualquer pessoa minimamente informada não poderia alegar que as desconhecia. Nesse grupo, encaixavam-se militares, monarquistas, católicos tradicionalistas, todos unidos pelo ódio comum ao governo republicano.
O caso Dreyfus extrapolava, então, as barras dos tribunais para se tornar o palco onde se travava o clássico combate entre conservadores e progressistas. Não era mais uma questão de inocência ou culpabilidade de uma pessoa em particular, mas um embate ideológico em torno de qual modelo político deveria prevalecer na França. Um conflito no qual a imprensa, diga-se de passagem, teve um papel fundamental, para o bem e para o mal. Se, por um lado, jornais como o corajoso L’Aurore de Clemenceau denunciavam com veemência os absurdos envolvendo o processo, outros veículos como os ultraconservadores La Libre Parole e La Croix, identificados com a direita católica e monarquista, promoviam uma campanha brutal contra Dreyfus e os seus defensores e se aproveitavam das acusações contra o oficial para fazer apologia antissemita, disseminando o ódio aos judeus.
Zola, de seu lado, pagou caro pela audácia. Além dos 11 meses de exílio na Inglaterra, perdeu definitivamente suas chances de entrar para a Academia Francesa. Teve ainda cassado o seu título de Legião da Honra e, como se não bastasse, foi obrigado a pagar uma pequena fortuna aos “peritos” que participaram do caso Dreyfus e atestaram a validade das provas falsas apresentadas contra o oficial. Escorraçados pelo escritor em “Eu Acuso…!”, eles moveram uma ação de indenização por danos morais contra Zola e ganharam, como era de se esperar da parcial Justiça francesa da época.
Em compensação, o caso Dreyfus, e a própria França, tomou outro rumo depois da publicação do texto de Zola. O aumento da pressão dos dreyfusistas sobre o governo para a revisão do processo e a descoberta de documentos falsificados pelo serviço secreto francês para incriminar Dreyfus – o autor da falsificação, o coronel Henry, suicidara-se na prisão – forçaram o Conselho de Guerra, em 1899, a se reunir mais uma vez para julgar novamente o oficial judeu.
Dreyfus foi trazido de volta da Ilha do Diabo para a França, completamente alquebrado pelos quatro anos de suplício na prisão. Ele chegou a ficar quase um ano acorrentado em sua cela, sem direito sequer de ver o mar, por conta de um boato que havia circulado na imprensa inglesa sobre um suposto plano de fuga da sua parte. Neste novo julgamento, os integrantes do Conselho de Guerra, apesar das evidências da inocência do réu, não tiveram coragem de absolvê-lo – julgá-lo isento de culpa seria assumir que o Exército tinha errado. O capitão foi, então, novamente condenado, mas com “atenuantes”: a pena foi reduzida para dez anos de prisão, na França.
Mas a França não era mais a mesma. Uma condenação como esta era por demais escandalosa para ser aceita pela opinião pública. Como saída para o imbróglio, o governo concedeu um indulto a Dreyfus, sem reconhecer sua inocência, e anistiou os demais envolvidos no caso, incluindo Zola. O escritor protestou duramente contra essa decisão. Ele queria ser julgado novamente e ver na cadeia todos aqueles que confabularam durante anos para manter um inocente na prisão.
Zola morreu em setembro de 1902, em circunstâncias que à época levaram muita gente a suspeitar que ele havia sido assassinado. O autor foi encontrado sem vida em seu quarto, e a causa alegada da morte foi asfixia provocada pelo monóxido de carbono que escapara da lareira. Zola partiu sem ver concretizado aquilo por que tinha lutado durante tanto tempo: a completa reabilitação de Dreyfus, que só ocorreu em 1906, quando a Corte de Apelação reconheceu finalmente o erro judicial que abalou a França por 12 anos.
Essa longa e desgastante batalha teve, no entanto, algumas consequências positivas. Com a completa desmoralização dos antidreyfusistas, a República francesa se consolidou definitivamente, relegando ao ostracismo todos aqueles que ainda sonhavam com a volta da monarquia. A educação foi retirada das mãos da Igreja, marcando de vez a separação entre o clero e o Estado. A esquerda também se fortaleceu, aumentando a sua participação no Parlamento francês e abrindo espaço para a institucionalização dos direitos dos trabalhadores. Como à época da Revolução de 1789, a França sinalizava para o mundo um novo modelo político-institucional, que também influenciaria outros países. A luta de Zola, e de todos aqueles da causa dreyfusista, não tinha sido em vão.
Trecho de “Eu Acuso…!”
“Eu acuso o tenente-coronel du Paty de Clam de ter sido o operário diabólico desse erro judiciário, inconscientemente, quero acreditar, e de haver, em seguida, defendido sua obra nefasta, durante três anos, por meio das mais absurdas e culpáveis maquinações.
Eu acuso o general Mércier de ter se tornado cúmplice, ao menos por fraqueza de espírito, de uma das maiores iniquidades do século.
Eu acuso o general Billot de ter nas mãos as provas verdadeiras da inocência de Dreyfus e de havê-las abafado, de ter se tornado culpado desse crime de lesa-humanidade e de lesa-justiça, com objetivos políticos e para salvar o Estado-Maior comprometido.
Eu acuso o general de Boisdeffre e o general Gonse de terem se tornado cúmplices do mesmo crime, um sem sombra de dúvida pelo ardor clerical, o outro talvez por esse espírito de corpo que torna as divisões do Ministério da Guerra a Arca Santa, inatacável.
Eu acuso o general de Pellieux e o comandante Ravary de terem feito uma investigação infame, eu entendo por isso uma investigação da mais monstruosa parcialidade, da qual temos, no relatório do segundo, um monumento imortal de uma audácia ingênua.
Eu acuso os três experts em caligrafia, os senhores Belhomme, Varinard e Couard, de terem feito relatórios mentirosos e fraudulentos, a menos que um exame médico os declare portadores de uma doença da vista e do juízo.
Eu acuso as divisões do Ministério da Guerra de terem desencadeado na imprensa, particularmente no L’Éclair e no L’Écho de Paris, uma campanha abominável, para enganar a opinião pública e acobertar as suas falhas.
Eu acuso, enfim, o primeiro Conselho de Guerra de ter violado o direito, condenando um réu com base em um documento que permaneceu secreto, e eu acuso o segundo Conselho de Guerra de ter acobertado esta ilegalidade, […], cometendo, por seu turno, o crime jurídico de absolver conscientemente um culpado.
Ao fazer essas acusações, eu não ignoro que me inscrevo nos artigos 30 e 31 da lei de imprensa de 29 de julho de 1881, que pune os delitos de difamação. E é voluntariamente que me exponho.
Quanto às pessoas que eu acuso, eu não as conheço, nunca as vi, não tenho contra elas nem rancor nem ódio. Elas são para mim apenas entidades, os espíritos da maldade social. O ato que realizo aqui é um meio revolucionário para acelerar a explosão da verdade e da justiça.
Eu tenho apenas uma paixão, a da verdade, em nome da humanidade que tanto sofreu e que tem direito à felicidade. Meu protesto inflamado é o grito da minha alma. Que ousem, portanto, me levar ao tribunal do júri e que a investigação aconteça em pleno dia!
Eu espero.
Queira receber, senhor Presidente, a certeza do meu mais profundo respeito.”
Fonte: Zola, Émile. L’Affaire Dreyfus. La vérité en marche. Paris: GF-Flammarion, 1969.
Para saber mais:
Uma excelente fonte sobre o affaire Dreyfus é o livro do historiador Jean-Denis Bredin, O Caso Dreyfus, de 1993. O livro foi lançado no Brasil pelo selo Scritta.
Bela lembrança em momento tão trágico, tão vulgar, tão triste da nossa história.