(Curadoria de Luís Araujo Pereira)
[1]
Fala
Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.
Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.
Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.
(Toda palavra é crueldade.)
̻ ̻ ̻
[2]
Odes
I
O verbo?
Embebê-lo de denso vinho.
A vida?
Dissolvê-la no intenso júbilo.
II
Sonho vivido desde sempre
̶ real buscado até o sangue.
III
O Sol cai até o solo
a árvore dói até o cerne
a vida pulsa até o centro
… o arco se verga
até o extremo limite.
IV
Lavro a figura
não em pedra: em silêncio.
Lavro a figura
não na pedra (inda plástica) mas no
inumano vazio
do silêncio.
V
A flor abriu-se.
A flor mostrou-se em sua inteireza:
̶ Tragamos, ouro, incenso, mirra!
̻ ̻ ̻
[3]
As Parcas
As Parcas
fiam
nada
tecendo
tecendo o nada
em lento fio
branco? Nem
branco:
apenas pura
perda, sussurro
de lento canto
que autoesvazia-se
e ̶ inútil ̶ tomba
evanescendo-se
na transparência.
……………………….
Apenas
isto:
Parcas vigilam.
Cintila o
mar.
̻ ̻ ̻
[4]
A loja (de relógios)
I
O relógio
horologium
a hora
o logos.
II
Os peixes estão
no aquário
o touro está
na balança
e a virgem
parindo
os gêmeos.
III
Os relógios estão
na eternidade.
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[5]
Círculo
O círculo
é astuto:
enrola-se
envolve-se
autofagicamente.
Depois
explode
̶ galáxias! ̶
abre-se
vivo
pulsa
multiplica-se
divindadecírculo
perplexa
(perversa?)
o unicírculo
devorando
tudo.
̻ ̻ ̻
Perfil
Orides de Lourdes Teixeira Fontela nasceu em 24 de abril de 1940 na cidade de São João da Boa Vista (SP) e faleceu em 2 de novembro de 1998 em Campos do Jordão (SP). Graduou-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Exerceu o magistério na rede estadual de ensino e foi bibliotecária em várias escolas. Recebeu o Jabuti em 1983 e o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte em 1996. O Ministério da Cultura concedeu-lhe em 2007 a Ordem do Mérito Cultural, categoria Grã-Cruz. Apesar das crises depressivas e da penúria financeira, teve êxito ao produzir uma poesia original e que “flui bela como uma água densa”. Sua obra poética compreende os seguintes livros: Transposição (1969), Helianto (1973), Alba (1983), Rosácea (1986), Trevo (1988), Teia (1996), Poesia Reunida (2006) e Poesia Completa (2015). Assim Antonio Candido pronunciou-se sobre a sua poesia: “Orides Fontela tem um dos dons essenciais da modernidade: dizer densamente muita coisa por meio de poucas, quase nenhumas palavras, organizadas numa sintaxe que parece fechar a comunicação, mas na verdade multiplica as suas possibilidades. Denso, breve, fulgurante, o seu verso é rico e quase inesgotável, convidando o leitor a voltar diversas vezes, a procurar novas dimensões e várias possibilidades de sentido.” A sua fortuna crítica inclui análises de Marilena Chauí, Augusto Massi, Flora Süssekind, Davi Arrigucci Jr., Alcides Villaça, Haquira Osakabe e muitos outros que se interessaram pela sua pequena mas sugestiva obra. Em 2015, Gustavo de Castro publicou o livro O Enigma Orides, biografia da poeta.
Confira abaixo um documentário sobre Orides Fontela, exibido em 2000 pela TV Cultura, com direção de Ivan Marques.
Orides Fontela traduz a poesia brasileira em sua forma mais resplandecente. Cada palavra é uma densa luz que reverbera em múltiplas possibilidades de significação estética. Em cada verso uma síntese de enigmas e revelações surpreendentes do que é a vida em sua intensidade de paixões e abandonos. Nela tudo que é impossível é dizível e nada parece ser difícil de ser suscitado.