Aqui perto se debruçava em mentiras – aquele desvio de máscaras, mão fechada sobre o mármore ou vidro; o rosto atenuado em revolta, rugas precoces e uma careta de babaca. Descobri que ele mantinha uma ferida aberta e um coração gelado. Quem era ele? Amorzinho pleno? Paixão adolescente? Galã improvisado aos 40 graus? Só você e eu sabemos que o buraco nos engole através de outro buraco que também nos engole. O eco do tempo perdido deixou um bilhete, pois o amor nele era o de um homem sem hipóteses funcionais. Relíamos o livro em busca de referências. Tarde demais, disse ele, afastando a cadeira ao virar-se de costas, e aquela bela bunda que lhe pertencia. A bunda que deveria pertencer ao meu corpo. Choramos vivos demais, complexados demais quando lhe mordi o pescoço. Deixei a marca da minha dor, a marca da minha vingança ao me apaixonar no escuro – sem braço forte que me segure, sem dedos entrelaçados, sem cumplicidade que me disperse da multidão. Não chorei por dentro, pois o horóscopo foi meu aliado. A lua, o sol, a perspicácia das sereias. Tudo isso me tornou doutorando na aritmética defeituosa do amor sob o terceiro sexo. Dezenas de chances perdidas. Einstein não encontrou solução e enterrou a cabeça no travesseiro.
Houve um deslizamento de terra às margens da BR-040 da minha existência estupefata. Chovi por três dias e as construções sobre mim desabaram. Conversei comigo mesmo como se eu me conhecesse. Vi um filme naturalista no qual uma professora plena e arguta lutava contra o universo escroto através de seus próprios meios, sem um centavo no bolso, abandonando o carro sem gasolina no meio da estrada.
Os caminhões e carretas que me formam bateram de frente, as minhas rodovias ficaram fechadas por mais de seis horas. Não houve reforma da minha previdência. Entre tantos depoimentos de lavagens de dinheiro que se resumem em emoções danificadas, três milhões de possibilidades não foram o grande alvo de qualquer investigação, apenas esta. Esta, meu amor.
Sobre você eu não escrevo porque eu quero escrever sobre ele. Relato transparente, porém emocional, isso é possível? Começou assim, éramos amigos, desfizemos a amizade, dissemos barbaridades aos inimigos, queríamos estar próximos no final. Não marcamos encontro, vivemos nossas vidas. Aí confessamos uma espécie de amor mútuo, pois me entorpeci de raiva quando telefonei para ele seis vezes seguidas e ele não atendeu. Dei um basta, eu estava no supermercado e tive que me contentar em carregar as sacolas sozinho. No dia seguinte perguntou se eu estava mais calmo. Eu estava mais calmo, por isso pedi desculpas, planejei um jantar em algum lugar confortável para depois nos debruçarmos assistindo a O Exorcista sob as cobertas. A noite era fria. Nos lambuzamos na paixão. E durante a madrugada nos abraçamos como se fôssemos as pessoas mais amorosas e destemidas do mundo.