No coração de Berlim, um prédio, pela frente do qual passam as ruínas do antigo muro que separava a cidade em duas partes, fica no terreno que guardou muitos segredos nos anos mais vergonhosos da história da Alemanha. Hoje, o mesmo local os revela. Em outro hemisfério, no caminho para o bairro de Soweto, um grande complexo, vizinho a um parque popular de Johannesburgo, convida a uma visita que não será exatamente divertida, mas certamente muito instrutiva. Em uma região populosa de Santiago, um imóvel de linhas arquitetônicas arrojadas abre uma esplanada para que as pessoas possam entrar nele gratuitamente. Lá dentro, pegadas de uma ditadura estão expostas.
Esses três espaços, situados em continentes diferentes e que se ocupam de períodos históricos e fatos distintos, têm mais em comum do que se pode suspeitar à primeira vista. Todos eles falam de atrocidades que foram cometidas no século 20 (ou seja, ontem), demonstrando duas lições cruciais para todos nós. A primeira delas é que os erros se repetem sim. Podem surgir sob formas e em momentos diferentes, mas têm o explosivo poder de reaparecer e fazer novas vítimas. A segunda tem relação direta com a primeira: não podemos nos esquecer do que já fomos capazes de fazer. Só assim, lembrando e relembrando tais desumanidades, temos alguma chance de evitá-las no futuro.
Alemanha
Em Berlim, o Museu Topografia do Terror foi montado onde funcionava a antiga sede da SS – a tropa de elite incumbida de missões especiais e secretas, como a vigilância e as crueldades ocorridas nos campos de extermínio – e da Gestapo, a polícia secreta (e sanguinária) do regime. O prédio original foi totalmente destruído nos intensos bombardeios de que a capital alemã foi alvo na Segunda Guerra Mundial e suas ruínas demolidas, como ocorreu com outros imóveis emblemáticos do terror nazista, tais como o Ministério da Propaganda e o bunker onde Adolf Hitler passou seus últimos momentos. No prédio da SS, batia ponto, entre outros, Heinrich Himmler, um dos arquitetos da chamada Solução Final. Ali, toda sorte de abominações foram levadas a cabo.
Ao entrar no prédio moderno que foi construído no terreno do velho edifício cinzento do horror, nos deparamos com uma grande maquete que mostra como era a Berlim nazista dos anos 1930 e 1940. Só assim descobrimos a localização correta do bunker do Füher, em que lugar ficava o Ministério da Propaganda de Joseph Goebbels, quais eram os pontos onde alguns fatos históricos ocorreram naqueles anos de pesadelo. A partir daí, de forma inclemente, os alemães fazem um mea culpa impressionante quanto aos milhões de erros cometidos. Não há nenhum tipo de minimização das responsabilidades, dos absurdos, dos crimes hediondos cometidos. Em cada sala, em cada foto, em cada vídeo ali exposto, encara-se o passado de frente, sem máscaras.
Para aquele antigo edifício – cujos alicerces ainda podem ser observados, permitindo localizar em sua arquitetura as celas e salas que o compunham – eram levados, por exemplo, presos políticos, artistas e intelectuais que ousavam não corroborar as barbáries do nazismo. Alguns dos espaços eram destinados a interrogatórios. Na verdade, à tortura desenfreada de quem caía nas mãos dos nazistas. São muitas as histórias de diretores de cinema, escritores, músicos que ali entraram para nunca mais saírem com vida. Uma carceragem nos porões servia de cativeiro para os inimigos do Estado, onde padeciam meses, anos enjaulados à espera de um julgamento de fachada, já que seus destinos estavam traçados. Eram enviados aos campos de concentração ou abatidos ali mesmo.
Em um conjunto único de imagens, vemos os rostos das vítimas, pessoas que pagaram com a vida o fato de serem judias, ciganas, de serem homossexuais ou pensarem de modo diferente dos asseclas de Hitler. Se alguém ainda tem a ousadia de negar o Holocausto judeu na Segunda Guerra, os próprios alemães não o fazem. Pelo contrário, assumem essa chaga com provas irrefutáveis, trajetórias de vidas, documentos, narrativas de como tudo aconteceu. No trecho do Muro de Berlim (ainda em pé) que passa em frente ao lugar, há uma exposição a céu aberto com essas histórias. Histórias que gritam diretamente dos porões. São os demônios vistos no inferno que habitaram. O Museu Topografia do Terror não é uma cicatriz e não deve sê-la. A ferida precisa ficar aberta.
África do Sul
Já em Johannesburgo, a temática é o apartheid, regime racista que segregava os povos negros nativos da África do Sul de seus colonizadores brancos. Pensado na segunda metade do século 19 e posto em prática nas décadas seguintes sob clara inspiração nazifascista e o mito da superioridade branca, o apartheid vigorou oficialmente entre 1948 e 1994, submetendo a população negra a toda sorte de humilhações, violências e desrespeito aos direitos humanos. E o Museu do Apartheid informa, detalhadamente, todo esse itinerário, do nascimento ao declínio do regime, revelando seus principais personagens, seus contextos históricos, seus momentos mais dramáticos.
O complexo é enorme e interativo. Você é convidado a estar no lugar de opressores e oprimidos, passar por momentos de discriminação (no papel de quem discrimina e de quem é discriminado), ser diferenciado de acordo com a cor de sua pele. É um início um tanto incômodo, mas muito revelador de nossos próprios sentimentos e essa é a ideia central do espaço. Só conseguimos ter uma dimensão mais exata daquela loucura se imergirmos, ainda que por pouco tempo, na lógica insana que movia tal ideologia. E como acontece em Berlim, o choque diante de imagens fortes e cruéis também integra esse espaço, sem subterfúgios ou maquiagens. O racismo exposto em suas faces mais inacreditáveis.
Evidentemente que Nelson Mandela ocupa o protagonismo dessa narrativa. Objetos pessoais do líder que ficou 27 anos preso por lutar contra o apartheid e, após liberado, tornou-se o artífice da conciliação entre as partes da África do Sul e o primeiro presidente negro do país estão distribuídos por toda parte, de sua maleta de trabalho ao carro que usava. Mandela comandou uma conciliação que pacificou o país, que até significou perdão, mas nunca esquecimento. A corrida por pedras preciosas e ouro que povoou o sul do continente africano com imigrantes de várias origens – ingleses, alemães, holandeses, franceses – é refeita em linhas cronológicas que identificam a origem do racismo na região, com capítulos dramáticos, como guerras de extermínio de povos nativos.
O museu é uma verdadeira aula de história e nos dá a dimensão, simbólica e real, dos desafios de se extirpar um mal tão enraizado quanto a segregação racial. Nessa trajetória entram figuras muito conhecidas em outros lugares, como o líder pacifista indiano Mahatma Gandhi, que viveu e até foi aprisionado na África do Sul, e o ditador cubano Fidel Castro, que (pasmem!) era amigo próximo de Mandela e sempre lutou por sua libertação. Línguas, povos, combates, lutas, mortos. Nada é encoberto no Museu do Apartheid, que refaz uma narrativa que não pode e não dever ser nublada, mas que só pode ser melhor compreendida estando em contato com seus detalhes.
Chile
Outro regime sanguinário, corrupto e persecutório foi o do ditador chileno Augusto Pinochet. Chefe das Forças Armadas chilenas, sua personalidade ambiciosa mostrou-se ideal para que os Estados Unidos, sob ordens diretas do então presidente Richard Nixon, derrubasse o governo socialista de Salvador Allende, eleito democraticamente em 1970. As diretrizes de Allende eram totalmente opostas aos interesses norte-americanos na América Latina em tempos de Guerra Fria. Amigo de Fidel, Allende era considerado pelo ex-secretário de Estado Henry Kissinger como um inimigo real e um agente que poderia aumentar a influência soviética em uma área dominada pelos EUA.
Em 11 de setembro de 1973, uma ação armada arquitetada por Pinochet, com o apoio de Washington, bombardeou o Palácio La Moneda, sede do governo chileno, levou à morte de Allende e começou aquela que é tida como a ditadura latino-americana que mais executou opositores. Ao todo, foram cerca de 3 mil mortos, boa parte deles assassinados sumariamente ou vítimas de atentados feitos pelo governo. Metade dos mortos tombaram apenas nos dois primeiros anos da ditadura, que durou 27 anos. Todos esses dados estão didaticamente apresentados no Museu da Memória e dos Direitos Humanos de Santiago, inaugurado em 2010 ao lado de um dos parques mais movimentados da cidade.
Um grande painel, com cerca de 6 metros de altura, estampa as fotos dos mortos e desaparecidos durante a era Pinochet. Rostos de pessoas de todas as idades, todas as classes sociais, todas a origens, unidos pelo mesmo fim trágico. Uma verdadeira política de eliminação de oponentes foi instaurada, não poupando sindicalistas, estudantes, artistas, políticos e até nomes de expressão da vida pública chilena. No subsolo do museu, um amplo espaço revela documentos da inteligência dos EUA que foram mantidos em segredo por décadas. Neles, há o registro de reuniões que preparam o golpe de Estado e a confirmação de que Pinochet ordenou pessoalmente vários assassinatos. É possível ouvir um diálogo entre Nixon e Kissinger comentando a queda de Allende.
Outro ponto impressionante do museu é o que traz, em um vídeo de cerca de 7 minutos, uma narrativa de como tudo aconteceu naquele outro fatídico 11 de setembro, desde as primeiras movimentações dos militares tomando as ruas, passando por pronunciamentos pungentes de Allende durante o levante, incluindo imagens dos caças bombardeando o palácio, e chegando à retirada do corpo do presidente e às ordens de execução de quem resistisse. Até mesmo o papel conivente de parte da grande imprensa chilena com Pinochet em troca de dinheiro é revelada sem rodeios. O espaço, que tem 5 andares e se liga diretamente a uma estação de metrô, é muito frequentado por estudantes e turistas.
Nesses três museus, somos submetidos a verdadeiros choques, em um aprendizado precioso que nos faz ter não só mais informação histórica, mas também maior capacidade de ler o mundo de forma crítica. Talvez isso falte no Brasil, onde os fatos passados são deturpados ao sabor de movimentos obscuros que tomam as redes sociais e que combatem, vejam só, até mesmo os museus. Talvez não gostem da vocação que esses lugares têm de nos manter alertas contra engodos. Aqui, tivemos uma anistia que tentou apagar tudo o que aconteceu na ditadura militar. Não fizemos uma reconciliação e sim um movimento em direção à amnésia. Queremos esquecer e não lembrar. Alemães, chilenos e sul-africanos, com seus contundentes museus, nos provam que estamos no caminho errado.