Sábado, 3 de fevereiro. Pré-carnaval. Diana me avisa por e-mail que nossa apresentação está marcada para quatro e meia da tarde no Bar do Cerrado. Mais uma vez, o Sambagô se une ao movimento dos blocos de rua em Goiânia. O grupo de percussão Sambagô (outro nome para agogô), já estava na rua em janeiro de 2009, quando participou, com o nome de Grupo do Teatro Inacabado, dado pela imprensa, da campanha de saúde pública contra o mosquito da dengue. Tempos heroicos. Sob a batuta de mestre Elias, dávamos os primeiros passos nas apresentações públicas. Na rua.
Fechou o sinal, íamos nós, batendo lata contra o aedes aegypti , praga da Bíblia. Perdão. Era preciso nos perdoarmos, perder a vergonha de principiantes, ter atitude, coragem de assumir e imitar os negros em festa, não negar nossas raízes, sustentar o carão, bater lata velha de tinta, quando ainda não tínhamos instrumentos formais. Dar o recado em segundos, para uma plateia classe média motorizada que sempre reagia com simpatia, sem precisar pedir moedinhas. Sem mosquito, para aliviar até mesmo a culpa neurótica. Contribuir para a saúde pública e a redução das desigualdades sociais (ambas têm algo de sinônimo, pois não?), em associação ao projeto de educação musical dos meninos da periferia de Senador Canedo, também coordenado por Elias.
Sempre apreciei o jeito de Elias dizer “lá no Canedo”, som do Brasil profundo, nos escuros da senzala, fogão de lenha, comida boa, luz de candeeiro, som do batuque enlouquecedor dos senhores e sinhás da casa-grande, misturados com a cambada, em transe de amores danados. Que davam quase sempre em dois caminhos, duas caminhas: o do tronco e o da geração de mulatos. Ouviste Sinhá, de Chico Buarque e João Bosco? Pois é. Aquilo. Até hoje. Não vê que o governo Temer proclamou de novo o estupro-escravidão? Não, ora, ele só o oficializou, para retirada dos embargos ao desenvolvimento do PIB, simples assim. Agro é tech, agro é pop, agro é tudo, diz o anúncio da Globo. Vai passar, diz o samba. Vinicius de Moraes definiu: “o samba é a tristeza que balança”. Então, tá, vamo batê lata!
Só que agora o Sambagô já sabe namorar, tem surdo, caixa, agogô, tamborim, apito, repinique, toque da platinela, triângulo, sem falar no auxílio luxuoso dos meninos do Canedo e a eficiência dos administradores pra maior força do pagode. E do maracatu, e do forró, e do reggae, e das marchinhas. Vem sendo assim, o Sambagô por onde passa todo mundo se mexe. Bonito de ver, mesmo com meus óculos embaçados de chuva e lágrimas de alegria.
Mas, aí então, depois de tantas apresentações em praças públicas, escolas, clubes, campus universitário, academias de ginásticas, depois de tanta animação na Praça do Coreto, em frente à Catedral, desfilando pelas ruas de pedras dos escravos em tantos carnavais de Goiás, arrastando multidões – numa dessas, o Denis alertou: “olha pra trás”, uma enorme quantidade de pessoas seguia o bloco, o Brasil descendo a ladeira, se bem que a mulata seminua, meio porta-bandeira, meio madrinha da bateria, fosse sensacional. E agora me chega a notícia de que – problema no paraíso – o Sambagô pode acabar, pelo menos com a formação atual. É que Elias e administradores já não se entendem tão bem. Pode ser que a apresentação no carnaval de Goiás seja a última com Elias. Lamento, embora tenha de reconhecer que a separação é um fato normal entre pessoas.
Mas o show tem que continuar, dizem. Lá cheguei mais uma vez ao Bar do Cerrado. Casa lotada. Cheguei com a camisa do Sambagô, me disseram que eu podia tocar com a camisa do Bloco do Cerrado por cima, como abadá. Tentei entrar no bar para encontrar os companheiros, e aí, surpresa, ninguém me avisou que eu tinha que pagar cem reais, só pra entrar. Como é?, perguntei à mocinha que anotava nomes na porta. Chamou-se o gerente, o sr. Igor, que foi bem simpático, depois que lhe expliquei: olha, vim aqui pra me apresentar com meu bloco, o Sambagô, nada tenho contra o seu bloco, muito pelo contrário, já tocamos juntos várias vezes, em alguns carnavais, dentro do bar e fora dele, atrás do trio elétrico, contornando o Parque Vaca Brava. Pagar só pra entrar? Como assim? Ele compreendeu, e disse que me dispensava do pagamento. Me foi entregue a camisa do Bloco do Cerrado, que vesti por cima da camisa do Sambagô.
Preferi não entrar no bar, esperando meus companheiros do lado de fora. Vesti a camisa, pensando nessa situação estranha, carnavalesca. Ensaiamos durante um ano, e na hora da apresentação, vestimos a camisa de outro bloco, ainda que ele seja um aliado no movimento pela ampliação dos blocos de rua em Goiás. Vai comendo, Raimundo, viu como é que é – só uma palinha, como dizem os músicos – a situação do bipolar e do esquizofrênico? De leve. Por baixo, Sambagô, por cima Bloco do Cerrado. Tá, vamos nessa.
Deixa de frescura, diria o analista de Bagé, não te fresqueia com esse troço de identidade, no que seria bem acompanhado de João Ubaldo Ribeiro, cansado de frequentar congresso de escritores que discutem identidade: é só sacar la tarjeta, mostrar a carteira de identidade, reproduzindo a fala de um deles num sotaque portenho. Identidades são imaginárias. Como o doce mil-folhas, superpostas, parte imaginária do ego, não dê muito bola, não é coisa em si, dá pra brincar com isso, sem sucumbir.
Então, começamos a tocar. Foi o esquenta, atrás do trio elétrico. Aí acontecem coisas curiosas, quando você está na rua, num protagonismo de rua. De repente, uma senhora se pôs ao meu lado, no ritmo da dança, botou a mão no meu ombro. Uma estranha. Mais nada. Giovani lá da calçada me reconheceu, chegou perto e me saudou com um sorriso de surpresa, como se fosse inacreditável me ver tocando caixa. Carol, quando me viu, levou um susto, arregalou os olhos, continuou andando pelo meio do bloco. Uma outra, assim, do nada, me deu um beijo na face. É difícil tocar e receber os gestos de carinho sem perder o ritmo, no andamento do bloco. Mas é bonito ver as pessoas se divertindo, se juntando nas calçadas, pulando de alegria, ou então as velhinhas acenando da sacada dos seus apartamentos, o samba parando o trânsito normalmente louco.
Muito riso, muita cerveja, alguns esbarrões, a ânsia de foliões que querem eles mesmos tocar os instrumentos, e a chuva engrossando. Também acho que a chuva ajuda a gente a viver no frevo de Caetano, no afoxé de Djavan, no sambão de Gonzaguinha. Meus pés já estavam encharcados, um rio tomou conta do asfalto. Paramos em frente a um bar, e aí o Elias nos “castigou”, exigindo o máximo do Sambagô, isto é, tocar até a exaustão. É nessas que o couro come.
Se segura, malandro, se um cair o outro cobre, sem parar, até que seja anunciada a – com perdão da mania de grandeza (ou será um exercício de grandeza?) – apoteose. A conclusão na súbita pausa. E aí você vai pra galera, ou, por outra, a galera vem até você, urrando, agradecida. Saudações, jaculações. Exausto do meu esforço de brincar, pensei, mais uma vez, do jeitinho de um alcoólatra, que nunca mais ia beber desse tanto (sem ter ingerido uma gota, a idade ensina a te cuidar).
Como é que vou voltar pra casa? Os táxis não pegavam ninguém na Avenida T-10, agora um rio. Subi a pé, até que dei sorte e encontrei uma boa alma num taxista que me trouxe perto de casa, onde comprei um conhaque numa loja de conveniência. Muito frio, cansaço, vou precisar de um banho quente e de uma boa dose. Liguei a televisão antes de dormir. Parece que toda a população do Rio foi para as ruas brincar nos blocos cada vez mais animados e numerosos. Dane-se a bala perdida. O Simpatia É Quase Amor trouxe de volta o espírito do carioca, brincalhão, crítico dos políticos, satirizando o prefeito Crivella. O carioca pode sair do bode pela batida do tambor.
Antes de deitar, fiquei pensando na tristeza do Sambagô acabar, se é que isso vai acontecer e justamente no carnaval. O show tem que continuar. Como nos versos de Ary Barroso, nas vozes de Tom Jobim e Elis Regina: “…irei cada vez mais me esmolambando, seguirei sempre cantando na batucada da vida”. Um analista não cessa de pensar nos poderes da palavra. O que seria de nós se também pensássemos nos poderes do tambor? Lembrei dos versos de Uma Razão, de Arthur Rimbaud: “Um toque de seus dedos no tambor detona todos os sons e inicia uma nova harmonia, / Um passo seu é o levante de todos os homens e sua marcha. / Sua cabeça se vira: o novo amor! Sua cabeça se volta – o novo amor!”
A propósito desses versos, o filósofo Slavoj Zizek, que não gosta de carnaval (e nisso penso que está errado ao reduzir nossa festa a uma diluição da luta de classes), reflete sobre o papel do tambor na solução da política: “O supremo paradoxo da dinâmica política é ser necessário um Mestre para tirar os indivíduos do impasse de sua inércia e motivá-los a se envolver na luta emancipatória autotranscendente por sua liberdade. Assim, o que precisamos hoje em dia, nesta situação, é de uma Thatcher de esquerda: um líder que repita o gesto de Thatcher na direção oposta, transformando todo o campo de pressupostos compartilhado pela atual elite política de todas as principais orientações” (Problema no paraíso – do fim da história ao fim do capitalismo, p. 213).
Zizek, todos sabem, é um exagerado, um excessivo, embora seja pelo excesso que se vê com lucidez um indício da solução não somente das questões políticas, como também da clínica psicanalítica (não é o excessivo que aponta o sintoma e o gozo?). Mas será mesmo que nunca sairemos desse maldito paradoxo da política, que nos arrasta aos salvadores da pátria, sem distinções entre líder, mestre e tirano? Se não conseguimos escapar dessa fatalidade, que pelo menos me seja concedida a graça de escolher os meus reis, Dorival Caymmi e Jackson do Pandeiro (entre outros, muitos outros). Pra não terminar com a nota esmolambada – embora verídica – de Na batucada da vida – e lembrando que o Sambagô também toca funk, recomendo o CD Jackson do Pandeiro – revisto e sampleado – sobretudo a faixa de abertura, Jack Soul Brasileiro, na voz de Lenine, juntando as composições de Jackson, Gordurinha e Almira Castilho:
“Já que sou brasileiro/ e que o som do pandeiro é certeiro e tem direção/ Já que subi nesse ringue/ e o país do swing é o país da contradição/ eu canto pro rei da levada/ na lei da embolada, na língua da percussão/ a dança, a moganga, o dengo/ a ginga do mamulengo/ o charme dessa nação./ Quem foi/ que fez o samba embolar?/ Quem foi/ que fez o coco sambar?/ Quem foi/ que fez a ema gemer na boa? / Quem foi/ que fez do coco um cocar?/ Quem foi/que deixou um oco no lugar?/ Quem foi/ que fez o sapo cantor de lagoa?/ Diz aí:/ Tião?/ Oi/ Fosse?/ Fui/Comprasse?/ Comprei/ Pagasse?/ Paguei/ Me diz quanto foi?/ Foi quinhentos reais/ Diz, Tião?/ Oi/ Fosse?/ Fui/ Comprasse?/ Comprei/ Me diz quanto foi/ Foi quinhentos reais/ Já que sou brasileiro/ do tempero, do batuque, do truque, do picadeiro/ do pandeiro e do repique/ do punk, do funk-rock, do toque da platinela/ do samba na passarela/ dessa alma brasileira/ despencando na ladeira/ na zoeira da banguela/ Quem foi …/ Diz aí…/ Só ponho be-bop no meu samba/ quando o Tio Sam pegar no tamborim/ Quando ele pegar no pandeiro e no zabumba/ quando ele entender que o samba não é rumba/ Aí eu vou misturar/ Miami com Copacabana/ Chicletes eu misturo com banana/ e o meu samba vai ficar assim/ A ema gemeu, a ema gemeu…” Quem me dera, o toque do tambor.
Grata satisfação meu nobre amigo, Roberto Mello ! Munto obrigado em poder compartilhar um pouquinho do universo musical, dessa riqueza, magica que é nosso samba. E estaremos no próximo ano no Cerrado e na cidade de Goias companheiro em mais um. ” Na Batucada Da Vida” . Forte abraço.