Na primeira cena, David Lynch está sentado em uma cadeira, em um jardim, fumando e olhando o vazio. Logo em seguida, ele se senta em frente a um microfone, em um ambiente de fundo sombrio, e começa uma pausada e paciente narração de sua vida. Uma história que começa em sua primeira infância e vai até o início de sua carreira como cineasta, num relato cronológico que o documentário David Lynch: A Vida de Um Artista acompanha com cenas de agora e registros de um passado já distante. Jornada que privilegia a faceta menos conhecida deste cineasta que dirigiu e escreveu filmes como O Homem Elefante e Império dos Sonhos e a série Twin Peaks. Ficamos conhecendo melhor o David Lynch artista plástico, seu imaginário e seus fantasmas.
Exibido na programação da 11ª edição da mostra O Amor, A Morte e As Paixões, realizada no Shopping Bougainville até 21 de fevereiro, David Lynch: A Vida de Um Artista, produção conjunta de Estados Unidos e Dinamarca e dirigida por Jon Nguyen e Rick Barnes, chegou a concorrer nos festivais de Veneza e Londres em 2016. Trata-se de um filme catártico, mas não para a plateia, que pode até ficar enfastiada. David Lynch fala o tempo todo, sem pressa e com ar cansado em muitos momentos, sobre suas recordações. E a partir delas, descobrimos sua paixão intensa pela pintura. Uma paixão que, fica-se claro durante todo o documentário, supera com sobras sua identificação com o cinema e a TV, áreas em que ficou mundialmente conhecido.
Essa é certamente a revelação mais surpreendente do trabalho. De resto, essa espécie de terapia, na qual estamos com David Lynch em nosso divã, é seletiva. Os traumas da infância e adolescência do diretor, relativamente pequenos e sem maiores escândalos, são tratados com algum vagar, mas com enormes doses de afetos familiares. Lynch demonstra grande admiração por sua mãe cuidadosa e generosa e por seu pai bonachão, mas que também poderia se mostrar intransigente. Nada muito diferente de um lar típico do interior dos Estados Unidos no pós-guerra. Em seu longo e muitas vezes cansativo depoimento, Lynch desce a detalhes, como as brincadeiras infantis.
As informações que Lynch vai liberando sobre sua vida e a respeito de experiências e episódios específicos são fundamentais para compreendermos suas telas e seus desenhos. Na maior parte do tempo, as associações que podem ser feitas com sua obra cinematográfica ficam a cargo do próprio público, sendo especulativas, portanto. Os desabafos do cineasta são reveladores do artista plástico, com expressões sombrias, frases emblemáticas colocadas nos quadros, escolha de texturas e materiais e uma racionalidade que se mescla ao elemento instintivo. Mas em outras dimensões, Lynch continua s ser uma esfinge, um homem que não se deixa e que não deseja ser decifrado.
Em pelo menos dois momentos do filme, David Lynch começa a contar uma história e para, não completando a narrativa. “Não consigo contar esta história”, chega a justificar-se. Em outros, seu depoimento é genérico. Em sua juventude, quando descobre a arte como vocação e se muda de cidade, ele tem atritos com seu pai. Em um deles, chega a ser ameaçado de expulsão de casa, ao mesmo tempo que admite que desapontava a mãe. “Eu passava a maior parte do tempo fazendo o que ela não queria”, afirma. “Eu estava na pior, fazendo muitas coisas erradas”, completa. O que exatamente? Não sabemos. Nesse caso, o bloqueio continua.
Lynch surge na tela como um artista profícuo, mas calmo, sem correrias. Retratado em sua mansão nas colina de Hollywood, à exceção de sua filhinha caçula, ele parece não ter interesse em mostrar a família ou abrir brechas em sua intimidade. Do passado, ele fala bem. Do presente, absolutamente nada. Mas ele está lá, em suas rugas, em seu olhar triste, na dificuldade que a idade lhe impõe para se curvar enquanto pinta ou esculpe peças maiores. Um gênio que envelhece em seu habitat, com as lembranças que ainda alimentam sua produção, sujando suas mãos como na primeira infância, recordando os amigos que o ajudaram, recorrendo a quem já não está mais ao seu lado. E assim David Lynch faz sua dolorosa terapia em público e, sobretudo, para seu público.
Filme: David Lynch – A Vida de Um Artista
Direção: Jon Nguyen e Rick Barnes