Eu gosto imensamente de Goiânia quando dirijo à noite pelas suas avenidas e ruas, pelas suas praças e alamedas, sem uma direção determinada, apenas pelo prazer de dirigir ao léu. Nesses momentos de dispersão, se é novembro, como uma cortina de chuveiros que são abertos de repente, começa a chover fininho e ininterruptamente − e essa chuva, que lembra a de São Luís do Maranhão numa semana de aguaceiro, é aquela de dezembro e pode ser também, entretanto, menos regular, a de fevereiro e a de março, que o efeito permanece o mesmo: o reflexo multiforme no asfalto abstrato e figurativo, molhado e escorregadio, além de poças d’água que passam rápidas ao lado do carro em formas geométricas, cujos pingos refulgentes, que se estatelam por causa da velocidade, desabando ao longo da luz contínua dos faróis, lembram uma miríade de insetos que voam apavorados rumo à morte.
Neste planeta, tal como ele nos suporta hoje, cada vez mais furioso com a nossa selvageria destrutiva, as chuvas tornam-se um fenômeno raro − e cada vez mais raro em muitas partes do mundo. Nem todos os povos as têm, essas chuvas benfazejas como um contrário líquido daquilo que elas também causam: a sequidão e a hostilidade do deserto. Numa antropologia elementar, eis uma verdade conhecida: mais pobre uma etnia quanto menos precipitações houver sobre o ambiente onde ela instalou a sua cultura.
Entre todas as línguas, não importam os povos que as falem, deveria haver um signo único para a chuva e, portanto, para a poesia possível que esse signo evoca, mesmo que nessa fantasia um verso fosse equivalente a uma gota translúcida que só brilhe um segundo, e depois se desmanche.
Seja no antigo Bairro Popular, seja na 4ª Avenida da Vila Nova, seja no Setor Sul, seja no Parque dos Cisnes e também em outros lugares distantes daqui, esta cidade me inclui há tantos anos como um de seus moradores que percebo − e cada vez mais − que repugno os seus fetiches mais abjetos e os seus homens mais medonhos. Nós somos feitos, eu e esta cidade, de uma quase mesma história, embora nem sempre seja possível perceber os traços comuns. Entre o tijolo e o mascate, o manual do operário migrante e a bíblia do fundador fazem flutuar sentidos invisíveis que por isso escapam ao deciframento imediato.
Se a comparo com outras cidades é porque Goiânia é única, como uma impressão digital que não esconde a província que sempre foi e os coronéis que sempre teve. Bem ou mal, só aqui encontro, entre tantos brasis, um modo errôneo de respirar o ar do Cerrado ou, de outra maneira, um jeito de me incluir no sertão vizinho à minha porta − esse sertão pleno de Hugo, Bernardo e Carmo, os quais elaboraram a ideia de um outro lugar que talvez não exista mais −, como a cena de um canário-da-terra tomando banho numa poça d’água ao lado da casa, enquanto um avião voa bem próximo em direção ao aeroporto.
Além do perfume de jasmim que sempre respirei no Setor Sul e agora reencontro-o (de novo) no Parque dos Cisnes, imagino outros odores marcantes da cidade, mas só me lembro de um cheiro que vem da infância − o cheiro de pão assando, quando, durante as madrugadas, passava em frente às padarias de vários bairros indo em direção ao centro da cidade para vender jornais. Esse cheiro me saudava todas as manhãs.
Talvez os odores característicos das cidades, como os de Paris e os de Lisboa, só sejam possíveis depois que o sangue dos homens se misturou à terra, e de tal forma, que surgiu daí, desse amálgama terroso e biológico, a cidade dos que não têm nome em seu panteão, mas que serão sempre os seus cidadãos, os de bom caráter e os de má índole.
Os mesmos e sempre cidadãos, apesar de eles não se darem conta deste fato notável: nós construímos as cidades porque precisamos ao mesmo tempo dos monumentos e da lápide, da memória e da sensação de permanência e, mais que tudo, da nossa voz, apesar de ela quase sempre não permanecer no coração dos homens vindouros.
Belo texto Luis!