Não quero acrescentar mais um tópico à série “momentos que abalaram o mundo”, mas alguns eventos da história criaram marcas d’água nas minhas tentativas de entender a vida. Penso na invenção da perspectiva por Giotto; na publicação do Elogio da Loucura de Erasmo junto com a Utopia de Morus na mesma década do XVI; na invenção do telescópio por Galileu; Flaubert planejando Madame Bovary ensandecidamente …
Todos os que quisermos elencar devem dizer respeito a um só fenômeno: a progressiva tomada de consciência de si consagrada por Descartes em sua famosa frase: penso, logo existo. A perspectiva, a retirada de deus do centro do universo, a descoberta de novos e diferentes mundos e gentes (geograficamente e historicamente) produziram um tipo de consciência de si mesmo que, apenas contraditoriamente, nos ensinaram a arte da desconfiança. Nisto está o pontapé inicial para a constituição do romance tal qual o entendemos hoje.
Nós costumamos dividir a vida humana em períodos que vão da antiguidade arcaica à modernidade ou à pós-modernidade, passando pela baixa Idade Média, alta, Renascimento e variações. Mas neste espaço em que posso me desfazer dos rigores acadêmicos, vou simplificar a coisa e separar nossa história em época antiga e época moderna, sem que necessitemos de um marco. Alguns filósofos já procederam assim: Schiller distinguiu o homem ingênuo do homem sentimental, Nietzsche lamentava o desaparecimento do homem trágico, Walter Benjamin, o desaparecimento do contador de histórias.
Perguntando-me sobre o lugar da leitura do romance na história da humanidade, juntei umas coisas assim:
Ainda na Idade Média, o trabalho de cópia de textos antigos pelos monges estimulava a comparação entre esses textos na tentativa de restabelecer suas verdades originárias. Essa prática ficou conhecida, todos sabemos, como estudos humanistas.
Florença sempre foi uma cidade de comércio, favorecida pelo Rio Arno, que a atravessa. Esta cidade não era um principado, mas contava já nesta época com um sistema republicano em que cada família burguesa se revezava no poder. Florença tinha um vigor econômico, mas essa qualidade republicana não lhe permitia potência bélica – a serviço de que família estaria uma guarda florentina? Por precaução, não tinha exército (esta é uma das maiores críticas de Maquiavel a sua cidade).
Para sustentar-se ideologicamente, as famílias burguesas de Florença investiram nas artes, na poesia, na filosofia. Os grandes chefes dessas famílias, todos de formação filosófica e teológica rigorosa, começaram a perceber nos estudos e registros sobre a cidade de Atenas um modelo de organização que poderia lhes garantir as bases filosóficas para seu desenvolvimento: em comum tinham uma organização oligárquica, não possuíam exército, mas compartilhavam de um forte espírito cívico.
Uma concepção de história circular garantia a Florença que ela seria uma nova Atenas (a Atenas de Sócrates e Platão). Mas os estudos humanistas começaram a revelar diferenças incontornáveis: a fonte do poder aristocrático ateniense era o nascimento. Ateniense virtuoso era quem esforçava-se para fazer jus a sua linhagem. O cidadão não apenas estava na pólis, ele era em si mesmo a própria cidade.
Os florentinos queriam-se atenienses por seu espírito cível, mas Florença era uma cidade de comércio, que contava, em sua organização, com a mobilidade social e com a política como uma profissão. Assim como Giotto havia percebido que o mundo só poderia ser representado pictoricamente se tomasse a si mesmo como centro e referência da representação. Assim como Galileu, ao criar um objeto que amplia o olho humano para fora do planeta, retirou deus do céu e do centro da vida do homem. Assim também os estudos humanistas fizeram-nos desconfiar de que a história não se repete.
A história passa a ser entendida como uma sucessão de fatos que produz seres diferentes. Os florentinos perceberam que não tinham nem nunca teriam a virtude grega – pois ela dependia do nascimento. Mas Maquiavel nos deu uma outra fonte de virtude: a virtù, a capacidade individual de se fazer respeitar (e de, com isso, governar).
Os humanistas desse tempo, no entanto, nunca negaram a existência de deus. O melhor exemplo disso é o Discurso sobre a Dignidade do Homem, de Pico de la Mirandola: deus criou o mundo e se retirou da criação. Cada sujeito é responsável por seu destino.
Fim do mundo antigo.
Agora seria necessário reorganizar o mundo em torno dessa ideia de indivíduo autor de si mesmo. Seria necessária uma nova ética, que deveria ser pessoal e não coletiva. E uma nova ideia de religião, que doravante estaria distinta da noção de sagrado.
Esta separação entre religião (histórico) e sagrado (a-histórico) permitiu que se submetesse a natureza ao estudo científico e o próprio corpo humano, deixando de ser interdito, passa a ser analisado. Há representação mais ambígua da criação do que a de Michelangelo na Capela Sistina?
Começo do mundo moderno.
O mundo do penso, logo existo está assentado sobre uma coisa chamada consciência que paulatinamente se transformará em escrita de si e ainda desconfiança de si: aí está a preparação para o romance. Na antiguidade, a narrativa (épica) transformava a experiência da virtude (arethé) em modelo a ser seguido. O problema é que o mundo moderno nunca conseguiu colocar nada estável no lugar daquilo que derrubou: uma noção de história configurada como uma flecha no ar, que não se repete nunca, que desconfia de toda tradição, impossibilita uma estabilidade como conheceu o homem antigo.
Como disse Otavio Paz: “tudo isso se deve à própria índole do instrumento empregado para derrubar os antigos poderes: o espírito cético, o espírito racional”. Numa sociedade em que a crítica é seu alimento e seu veneno, a narrativa não pode mais oferecer modelos. A épica da modernidade é o romance: um gênero sem forma, sem verdades absolutas, que desconfia de tudo porque depende apenas de um sujeito que coloca todo o mundo sob a perspectiva de sua (des)razão.
O paraíso, para o homem, não está mais fora do tempo, na origem absoluta do gênesis ou no fim absoluto da cidade de deus. O paraíso do homem está na história, roseanamente: nas estórias: são as utopias, as ilhas de Robinson, os futuros propostos pelos romances de ficção científica.
Verdades relativas, próprias de heróis que duvidam – e dos quais sempre duvidamos também. Heróis céticos, rebeldes ou antissociais, todos em luta com o mundo (não há mais aquela harmonia entre homem e cosmos própria do mundo antigo).
O herói épico nunca é rebelde, como Robinson. O ato heroico tende a restaurar a ordem ancestral. O ato de rebeldia de Robinson cria uma nova ordem. O herói moderno duvida de si mesmo. Projeta sua dúvida sobre a realidade que o sustenta: são moinhos ou são gigantes, pergunta-se Dom Quixote.
O realismo do romance moderno é uma crítica, uma suspeita da realidade. Outra forma de investigarmos o realismo de um romance é: de que ele suspeita? O romance traz sempre uma pergunta sobre a realidade da realidade.