Em O Declínio do Homem Público, Richard Sennett estuda aspectos da vida pública em Paris e Londres nos anos 1750, quando do florescimento da classe burguesa (e derrocada da aristocracia) na Europa, fazendo um histórico comparativo das mudanças de comportamento no palco e na rua, com o objetivo de demonstrar o fim da vida pública. A cidade grande é o palco dessa revelação (a partir da mudança de comportamento do homem), e Sennett descreve como sua forma é desenhada e redesenhada a partir das novas relações sociais e econômicas que vão se delineando ao longo daquele século. O autor destaca que é somente no ambiente da “cosmópolis” que a “vida entre estranhos” é possível. Diz ainda que é na cidade grande que as transformações são percebidas, pois os homens agem como atores neste palco.
Para demonstrar sua tese, Sennett inicia o livro observando que a erosão da vida pública pode ser confirmada na experiência pessoal, na expressão do amor físico que passou dos termos do erotismo para os termos da sexualidade, deformando a intimidade entre as pessoas, e que o narcisismo faz com que o verdadeiro interesse nas relações íntimas e sociais tenha sido perdido:
“[…] foi a geração nascida após a Segunda Guerra Mundial que se voltou para dentro de si ao se libertar das repressões sexuais. É nessa geração que se operou a maior parte da destruição física do domínio público. A tese deste livro é de que esses sinais gritantes de uma vida pessoal desmedida e de uma vida pública esvaziada ficaram por muito tempo incubados. São resultantes de uma mudança que começou com a queda do Antigo Regime e com a nova formação de uma cultura urbana secular e capitalista” (p. 33).
O autor propõe pensar quatro questões para responder ao problema da morte da res publica: 1) que efeitos as condições materiais – a população e a economia das capitais no século XIX tiveram sobre o âmbito público?; 2) de que modo a personalidade individual se tornou uma categoria social?; 3); o que aconteceu com a identidade do homem em público?, e 4) em que termos a personalidade pública lançou as sementes da regulamentação moderna de intimidade?
O livro está dividido em duas partes. Na primeira, o autor esquematiza três forças de transformação em atividade no século XIX que alterariam a vida pública e que, somadas, seriam as responsáveis pelo declínio da vida pública.
O capitalismo industrial
O consumo de produtos que não eram necessariamente importantes para a vida diária inicia uma transformação no âmbito público no século XIX. As grandes revoluções do final do séc. XVIII e início do séc. XIX e o capital industrial modificam as relações na vida pública nas grandes cidades. Inicia-se a era da “mistificação” da vida material, causada pela produção e pela distribuição de produtos em massa. O capitalismo industrial “mudou a natureza da privacidade”, quando, em público, a observação entre as pessoas no momento do consumo não podia deixar revelar quem se era. O segredo era o “preço da continuidade do contato humano”.
“O cosmopolitismo – ou seja, a experiência da diversidade na cidade – passou, portanto, para a experiência das classes trabalhadoras como uma experiência de consumo. A celebração do bairrismo e da vizinhança em pequena escala que hoje é feita por planejadores bem-intencionados é um esforço não premeditado de uma nova forma de dominação, um despojamento da cidade que se impôs aos trabalhadores no século passado” (p. 203).
A nova secularidade
A outra força a mudar o sentido da vida pública neste período é a mudança nos sistemas de crença – a secularidade. Com Darwin, o sagrado e o natural têm seus sentidos subvertidos. “Por volta de 1840 parecia plausível estudar uma emoção” e essa mudança no “código do conhecimento secular teve efeito radical sobre a vida pública”: aparições em público deveriam ser levadas a sério, pois poderiam revelar personalidades ocultas só expressas na vida privada.
Sennett entende que essas duas forças (o capitalismo industrial e o novo secularismo) contribuíram para um desastre cognitivo sobre os acontecimentos da sociedade na virada do século. O autor aponta que há um equivoco quando os historiadores dizem que uma revolução “para” ou interrompe um modelo de sociedade e, logo em seguida, uma nova sociedade se inicia. Na realidade, como não conseguimos entender os efeitos da mudança como sendo uma continuidade, mas sim como uma ruptura, permanecemos pensando como no século anterior e isso tem efeitos muito negativos no que se refere ao estudo das cidades e da cultura urbana.
“O legado deixado pela cidade do Antigo Regime estava unido aos impulsos privatizadores do capitalismo industrial de um outro modo. Era em público que ocorria a violação moral e onde ela era tolerada; em público podia-se romper as leis da respeitabilidade, […] passava-se por entre estranhos, ou, o que é mais importante, por entre pessoas decididas a permanecerem estranhas umas às outras” (p. 43).
A secularidade faz surgir um novo tipo de cidade – a cidade cosmopolita[1]. Rousseau é o autor de referência para entender o contraponto entre a cidade pequena e a cidade cosmopolita, apresentando a teoria do cosmopolitismo e a teoria da tirania política. O filósofo entende que a cidade grande é o lugar onde o homem se perde de si mesmo, pois a natureza econômica de um centro cosmopolita faz com que ele seja corrompido em sua vontade. A socialização e o lazer nessa cidade cosmopolita, onde uma cultura pública é desenvolvida, são atividades para os ricos, ou seja, para uma pequena parte da população. Os homens pobres tentam imitar os homens ricos e “sacrificam seus interesses materiais para manterem um ‘estilo’ de vida que comporta o lazer” (p. 177).
“A cidade grande é um teatro. Seu tema é principalmente a busca pelas reputações. Todos os homens da cidade se tornam artistas de um tipo particular: atores. Ao representar uma vida pública perdem o contato com a virtude natural” (p.179).
O novo comportamento social
O novo comportamento social, somado às forças descritas anteriormente, prepara o século XX para uma rejeição do que é público pelos traumas do século XIX (em termos de vida pública). Sennett busca em Balzac e na descrição da atividade teatral a interpretação para a personalidade e o comportamento em sociedade no século XVIII – “o palco diz uma verdade que a rua não diz mais”. O impulso e a espontaneidade eram tidos como anormalidade, rejeitados na rua, em público. O sentido de relações sociais se tornara esvaziado mesmo quando a sociedade se via num banquete coletivo.
Ao final do século XVIII, a vida social se amplia para fora dos espaços do teatro, e as classes trabalhadoras começam a fazer passeios em parques (agora construídos para se tornarem centros sociais e lugares de passeio e pedestres). Ir a espetáculos de teatro no séc. XVIII começa a formatar um tipo de comportamento (do público) que faz com que o “ser social” (do ator inclusive) seja capaz de controlar suas emoções, não expressar/revelar seus sentimentos, quem está em público deve ser “civilizado”. “Pubs” e outros locais de encontro não são mais frequentados: “o silêncio é ordem, porque o silêncio é ausência de interação social”.
Nas cidades mais importantes da Europa, a legitimidade da ordem pública é enfraquecida pela desordem da sociedade industrial, e a vida pública se torna moralmente inferior à vida privada − em família. A família se torna o refúgio de segurança de uma vida moralmente adequada.
Nasce a personalidade individual em detrimento da coletividade.
Sennett apresenta a origem da palavra “público” a partir de estudos de Erich Averbach, que diz que ela surge na França em meados do séc. XVII, ligada ao público-plateia das peças teatrais. Nesse mesmo período, essa plateia era um grupo seleto de pessoas que tentavam encobrir suas origens sociais através de um modelo de comportamento dentro dos espaços do teatro. Na medida em que as cidades crescem, outros grupos de pessoas (burgueses) entravam em contato uns com os outros na sociedade e o sentido de quem era o público se amplia para onde se está em público. Em público é uma vida que se passa fora da família e o centro (lugar) dessa vida é a capital.
A oposição entre os termos público e privado pode ser entendida também a partir de como se constituiu o conceito moderno de direitos humanos e que provém da oposição entre os termos natureza (privado) e cultura (público). A infância foi descoberta como uma possibilidade de ser um estágio especial da vida humana – uma vida vulnerável – e a criança deixou de ser entendida como sendo um adulto pequeno. A família se torna “uma forma histórica mais do que uma forma biológica fixa na história”.
No início da modernidade, a sociedade europeia propõe uma estratificação da sociedade de “tal forma e tão dispares compartimentos que eles perderam o senso de pertencerem à mesma espécie […] o público era uma criação humana e o privado uma condição humana”.
As transformações na forma urbana, no século XVIII, seguem as transformações observadas no comportamento das pessoas, em seus trajes e em sua dicção. Estar em público segue princípios que ligam a rua ao palco e coloca o homem como ser expressivo, que tem sentimentos e expõe isso – a plateia se manifesta no teatro. Na vida privada, as roupas “folgadas” começam a ser utilizadas e passa-se a viver um ambiente “mais natural”, revelando os primeiros termos da separação entre o domínio público e privado.
A manifestação da plateia nos teatros passa a ser vista como reflexo da vida na rua, e o silêncio era interpretado como uma falha dos atores, ou que não estava havendo diversão. O discurso e o tom da voz eram a chave da questão para o sucesso na vida pública, assim como no palco. Nos ambientes de clube ou passeios a pé (ambientes de socialização), a ideia era conseguir, por meio do discurso, ser visto e não descobrir qual era o extrato social a que se pertencia; porém, as ruas eram inadequadas, sujas e pequenas e esse mesmo discurso se tornou fragmentado, perdeu o sentido.
Era necessária uma reestruturação da cidade. Assim, surgem em 1730 os parques públicos, desenhados para permitir passeios de carruagem e a pé com mais facilidade. O discurso nesses ambientes pertencia às classes média e alta. Os passeios pelos parques exigiam códigos de conduta com sinais e gestos, e o sentido moderno de público se consolidava no corpo e na fala.
Descrevendo a paisagem das cidades de Paris e Londres, “apinhadas” de casas em ruas que não tinham mais de três metros de largura, Sennett observa como as cidades tomam nova forma após dois grandes incêndios: no ano de 1666, em Londres, e o de 1680, em Paris. A reorganização das duas cidades se deu “de acordo com um novo princípio, o da praça: uma praça radicalmente distinta das praças das pequenas cidades medievais tanto na aparência quanto na função”.
Em Paris, esse desenho foi proposto como um espaço imenso, “no meio de um conglomerado urbano”, e com restrições de uso: eram proibidos barracas, acrobatas e outras formas de comércio de rua. As atividades deveriam ser principalmente as de passagem e transporte e deveriam ser “o lugar da ordem”.
Nas duas capitais, as praças monumentais do princípio do século XVIII, que tinham como objetivo reorganizar a aglomeração populacional na cidade, reestruturaram também a função da massa, pois a liberdade estava restrita nesse ambiente. O entorno era constituído de construções ricas e o comércio deveria ficar afastado, o que enfraqueceu a vida nessas praças. Os encontros passaram a acontecer nos cafés e parques públicos.
O contato entre estranhos, atitude rotineira na cosmópolis, se tornara dificultado por esse novo arranjo na forma urbana. Fazendo uma comparação com as cidades dos EUA, o autor aponta que “a rua era o local de compra, de reuniões em grupo, palco de observação casual com a igreja constituída num ponto central ao longo desta rua”. Os estranhos de Londres e Paris do século XVIII não dispunham deste cenário e não podiam, portanto, fazer contato, se conhecer. Não havia sentido na plateia, no público.
Sennett destaca que a organização do espaço urbano também fica desprovida de sentido quando essa visão intimista ou individualizada torna o lugar do domínio público esvaziado.
A cidade moderna
Usando como exemplo um edifício de arquitetura modernista em Nova York, o autor expõe que o modelo de parede envidraçada faz com que o exterior e o interior, apesar de sugerirem uma permeabilidade física, também isolam o acontecimento da vida na rua. Esses modelos de edifícios propõem espaços abertos no térreo, mas são na verdade áreas de passagem, de acesso a grandes halls, portanto, isolam as ruas de uma relação física com o interior do edifício, isolam as pessoas. Outra característica do meio físico que faz com que o espaço público possa estar morto é o isolamento que esse modelo de edifício (modernista) imprime ao seu usuário. As pessoas ficam inibidas no relacionamento com o meio em que estão inseridas.
As ruas da cidade modernista adquirem a função apenas de permitir a movimentação e não mais são espaços reservados para o encontro. Hoje, quando são bloqueadas com semáforos, sinalizações e controle de velocidade, são palco da fúria dos condutores particulares de automóveis. Essa ansiedade é gerada pela ideia de que, se o automóvel é particular, seu condutor está imbuído do direito de não ser interrompido no trajeto que pretende fazer. O espaço público da rua como fora entendido pelas gerações anteriores não faz sentido. Estar na rua é condição de se movimentar, passar, circular e não mais de socializar. Também pode-se constatar a morte do espaço público pelo fato de, ao se isolar num veículo e exercer o direito de se movimentar sem ser interrompido, a pessoa passa a não perceber o espaço à sua volta.
O isolamento produzido pela própria visibilidade entre as pessoas em locais públicos provoca ansiedade, pois os novos espaços de trabalho corporativos, sem paredes entre os ambientes, invadem a privacidade de cada um, não permitem que, no ambiente de trabalho, se possa exercer a privacidade. Com isso “[…] as pessoas procurarão um terreno íntimo que em território alheio lhes é negado”. Fecham-se em suas casas ou se isolam umas das outras em espaços abertos.
Fazendo a relação entre o ambiente urbano e a vida pública, Sennett aponta como os termos urbano e urbanizar são difíceis de usar e fáceis de confundir. O uso comum toma “urbano” fazendo referência a um lugar no mapa e à sua vida; urbanizar aparece com “referência à expansão dessa vida para outros lugares além da cidade física”, lugar onde estranhos vão se encontrar de modo rotineiro.
As mudanças na forma da cidade grande são provocadas pelo grande número de pessoas que se veem usufruindo dos lugares comuns, porém, com menos contato umas com as outras. Há uma predominância das atividades de comércio, finanças e burocracia nas capitais e mais pessoas estranhas se juntam nos espaços de trabalho e nas ruas, todavia, estas permanecem isoladas umas das outras.
A cultura da personalidade desenvolvida no século XIX descrita por Sennett tem influência no senso de comunidade construído no século XX.
O autor destaca Camillo Sitte como urbanista que defende a ideia de comunidade como território passível de um modelo de projeto de cidade, imaginando relações comunitárias sem interesses políticos ou econômicos. Porém, a ideia de uma “celebração da comunidade territorial” esbarra numa lógica de defesa local que acaba por isolar esse grupo: “Quando uma comunidade ‘combate’ a prefeitura nesses termos, ela combate para ser deixada em paz, para ficar isenta ou protegida do processo político e não para mudar o próprio processo político”.
Sennett propõe ampliar essa proposta, chamando a atenção para a possibilidade de esse modelo formar guetos, onde a esfera psicológica da vida transforma relações sociais em relações psicológicas: se o outro não for igual aos do grupo, ele não será aceito na comunidade.
O projeto moderno de cidade zoneada ou atomizada destrói o espaço público quando traz a homogeneização dos usos e, consequentemente, a homogeneização das pessoas no seu cotidiano. Não há diversidade nem complexidade de experiências no espaço urbano, e o contato social desaparece.
A própria sociedade modelou, então, uma imagem para responder a essa nova forma da cidade/comunidade: a imagem de multidões e a ansiedade que a socialização nesse ambiente provoca. O comportamento das pessoas em multidões é o típico do isolamento quando na cidade grande o “burguês, nas ruas, estava numa multidão, mas não pertencia a ela”. Essa imagem de que multidões são ambientes indesejáveis tem como consequência a ideia de que comunidades são ambientes de ordem e têm função de vigilância. O modelo de comunidade provoca, então, o surgimento de um território de retraimento e indiferença do “comunal versus o urbano”
Para Sennett, os planejadores que propõem um senso de comunidade em nível local podem estar despertando um ambiente de oposição da vida pública na cidade como um todo.
O fim da cultura pública
Sennett conclui que os novos comportamentos individualistas das pessoas geram novas relações ou significações sociais e camuflam dois âmbitos da vida pública: o âmbito do poder e o âmbito das cidades ou aglomerações em que vivemos. O “eu” passou a definir as relações sociais e se tornou um princípio de vida narcísico. A cultura pública do século XIX estava ligada ao iluminismo e, com Weber e Freud, o homem percebeu que era autor de seu próprio caráter. Com isso, o terreno público, de significações impessoais, de caráter natural e espontâneo, perdeu espaço, diminuiu.
De acordo com o autor, os meios de comunicação eletrônica confirmam o fim da vida pública quando tornam o contato efetivo (físico) desnecessário. Os meios de comunicação de massa intensificam os padrões de silêncio da multidão, que começaram a tomar forma no século XIX, com um espectador passivo, destituído de expressão. Esse também era o comportamento das pessoas nas ruas das cidades.
A cidade deve ser o lugar onde, nas relações entre as pessoas, a compulsão de conhecer-se deveria ser a mais significativa das atitudes, pois sempre foi o palco, na história do homem civilizado, dessa ação, do encontro, “da experiência das possibilidades humanas”, hoje adormecida.
[1] Termo que surge no século XVIII e se refere a ”um homem que se movimenta despreocupadamente em meio à diversidade, que está à vontade em situações sem nenhum vínculo nem paralelo com aquilo que lhe é familiar” (p. 34).
Excelente texto. Desafia muita reflexão e debate. Fiquei com muita vontade de ler o livro…