Tenho dúvidas, mas não o filósofo Slavoj Zizek. Ele crava: estamos vivendo no fim dos tempos. Quais são os sinais? A crise ecológica mundial (a disputa por água e comida), os desequilíbrios no sistema econômico, a revolução biogenética e o crescimento das divisões e rupturas sociais. São esses os quatro cavaleiros do Apocalipse vindouro.
A crença do filósofo esloveno é de que o capitalismo está se aproximando rapidamente de sua crise terminal. Estaríamos no fim dos tempos de um capitalismo tardio, que estertora, agoniza, recusa-se a morrer (ao contrário, parece dar sinais de que nunca vai terminar, saúde de ferro, inquebrantável, e a prova disso seria a revolução digital). Será que o fim do capitalismo coincidiria com o fim do mundo? Quem viver…
Enquanto agonizo, examino os argumentos de Zizek, baseados numa leitura renovada de Hegel e Lacan, com quem confecciona um coquetel molotov para não só pensar a complexidade contemporânea, mas também destruí-la na medida em que ela é edificada pelo discurso do capitalista. Ele não engana, declara-se abertamente comunista, elogia Mao (“Há uma grande desordem sob o céu, a situação é excelente”, teria dito o “timoneiro” para encorajar seus companheiros ainda hesitantes, dúbios na tentativa de manter a ordem contra a qual diziam lutar, antes que a vontade política, a singular subjetividade de um líder os levasse à revolução que conduziu a China ao status de grande potência … comunista? Capitalista? Um mix dos dois? Outro enigma a desafiar os pensadores).
Um novo ingrediente é adicionado ao coquetel: Zizek se vale do famoso esquema dos cinco estágios do luto proposto pela psicóloga suíça Elisabeth Kübler Ross. No seu livro – Sobre a morte e o morrer –, a doutora descreve a montanha-russa dos sentimentos quando descobrimos que temos uma doença terminal. Primeiro estágio: negação: nos recusamos a aceitar o fato (“Isto não pode estar acontecendo, não comigo”); em seguida, raiva: a explosão, quando não podemos mais negar o fato (“Como isso foi acontecer comigo?”); barganha: esperança de poder adiar ou minimizar o fato (“Deixe-me viver até meus filhos se formarem”); depressão: desinvestimento libidinal (“Vou morrer, então, por que me preocupar?”); e aceitação (“Já que não posso lutar, é melhor me preparar”). A psicóloga suíça, lembra Zizek, “aplicou esses estágios a todas as formas de perda pessoal catastrófica (desemprego, morte de entes queridos, divórcio, vício em drogas) e enfatizou que eles não aparecem necessariamente nessa ordem nem são todos vividos pelos pacientes”.
Zizek declara que é capaz de distinguir os mesmos cinco padrões no modo como a sua consciência social lida com o Apocalipse. Sem questionarmos a veracidade dos conteúdos psicológicos, podemos pelo menos aproximá-los da metodologia freudiana que recomenda tratar a sociedade como um indivíduo e o indivíduo como sociedade, estabelecendo entre os dois polos uma tensão, uma oposição inclusiva (não há um sem o outro). “A primeira reação é a negação ideológica de qualquer ‘desordem sob o céu’”, diz Zizek; “a segunda aparece nas explosões de raiva contra as injustiças da nova ordem mundial; seguem-se tentativas de barganhar (‘Se mudarmos aqui e ali, a vida talvez possa continuar como antes…’); quando a barganha fracassa, instalam-se a depressão e o afastamento: finalmente, depois de passar pelo ponto zero, não vemos mais as coisas como ameaças, mas como uma oportunidade de recomeçar”. E é aí que o filósofo repete como um mantra de seu pensamento político a citação de Mao: “Há uma grande desordem sob o céu, a situação é excelente.”
Os cinco capítulos do livro de Zizek referem-se às cinco posições descritas. “Negação” abrange os “modos predominantes de obscurecimento ideológico, desde os últimos campeões de bilheteria de Hollywood até o falso (deslocado) apocaliptismo (obscurantismo da Nova Era e coisas do tipo)”. “Raiva” mostra os “violentos protestos contra o sistema global, em especial a ascensão do fundamentalismo religioso”. “Barganha” examina a “crítica da economia política, com um apelo à renovação desse ingrediente fundamental da teoria marxista”. “Depressão” descreve “o impacto do colapso vindouro, principalmente em seus aspectos menos conhecidos, como o surgimento de novas formas de patologia subjetiva (o sujeito ‘pós-traumático’)”. “Aceitação” conclui pelo registro de sinais do surgimento do que Zizek chama de “subjetividade emancipatória”. Zizek procura os “germes de uma cultura comunista em suas diversas formas, inclusive nas utopias literárias e outras (desde a comunidade de camundongos de Kafka até o coletivo de bizarros párias da série televisiva Heroes, passando pelas favelas.)
Será um “retorno a Kafka”, tão esquecido pela psicanálise, até mesmo a lacaniana? Claro, Lacan não podia fazer tudo (mas é curioso que ele mal tenha citado Kafka, ignorando o mestre da tragicomédia humana na vertente falta-de-sentido-da-vida-atravessada-de-ponta-a-ponta-pela-angústia-existencial). A quem interessar, a comunidade kafkiana aparece no conto Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos, em Um artista da fome/ A construção, na tradução de Modesto Carone, pela Companhia das Letras, São Paulo, 1998.
Zizek admite, depois de elaborado o luto pela catástrofe do comunismo, que a subjetividade emancipatória deve ser criada, e até mesmo contra a vontade do povo alienado no discurso do mestre contemporâneo, o capitalista. Nada de bancar o “bonzinho” liberal que distingue capital produtivo de capital especulativo: não há um sem o outro, diz Zizek, o capital especulativo é o capitalismo. Em contrapartida, a situação global que nos envolve a todos só é inteligível sob o pano de fundo do comunismo, isto é, não as nossas diferenças, mas o que temos em comum.
Por exemplo, a propriedade intelectual. Assim, o comunismo é entendido não como uma solução (que não há), mas como um problema. Por mera vontade política imbuída de crença e fé, Zizek inverte, mais uma vez, os termos da interpretação teológica padrão: “O locus communis ‘É preciso ver para crer!’ deveria ser sempre lido com sua inversão, ‘É preciso crer para ver!’”. Só o engajado é que veria a verdade. Será? Eis a minha dúvida.
Penso no Rio de Janeiro. Penso em Chico Buarque: “São Sebastião crivado nublai minha visão na noite da grande fogueira desvairada, quero ver a Mangueira, derradeira estação, quero ouvir sua batucada, ai, ai” (letra de Estação derradeira ). Nublai minha visão. O que vejo é terrível. A fantasia me protege do real. Filtro. O real é impossível de ser simbolizado. Daí, invento. A fantasia sustenta o desejo.
Dia 15 de março (ainda não os idos de março?). Tiros na cara do Brasil bonito. Execução, assassinato da vereadora (portanto, uma autoridade) Marielle Franco. Terrorismo de Estado ou não? Se for do Estado, está criada a “jurisprudência”: se qualquer um não concordar com qualquer autoridade política, tiro na cara. É assim?