Comecei a pensar nesse texto em 2010, quando peguei a poesia completa de Baudelaire para ler de ponta a ponta. Há uma primeira versão em algum lugar perdido no tempo e no espaço da internet. Era no tempo dos blogs…
Talvez eu tenha sido sempre uma má leitora de poesia, procurando unidade entre as manchas gráficas que mal ocupam uma página ao longo dos livros. Enfiei na cabeça que o conjunto de As Flores do Mal poderia ser considerado um poema épico às avessas. Não porque apresente um anti-herói, mas às avessas porque descrê dos poderes da poesia. E se há um herói, não lhe faltam apenas os atributos físicos e morais para tanto, faltam-lhe inscrição no mundo e clareza de si mesmo. Trata-se, na minha leitura, de um sujeito em torvelinho cuja lira dissona a tormenta, fazendo o mundo vibrar sem desfazer-se. Permanente tensão na iminência do caos.
Não seria mesmo o caso de dizer “anti-épico”. Claro está que não remete a qualquer definição de poesia épica, de Aristóteles a Bowra. Mesmo assim, tentei enxergar relações entre os poemas, todos, a rigor, do gênero lírico. Procuro demonstrá-las aqui e, provavelmente, o texto vai ser um tanto esquisito, um tanto narrativizante. Sei que corro o risco de ter minhas palavras engolidas por um imenso bocejo. Mas antes que o cachimbo caia, agarre suas Flores do Mal e sigamos, então, tu e eu, nesse roteiro para o Tédio. Quem não conhece esse monstro delicado? Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!?
O surgimento dessas “Flores” me lembra da estória em que, depois de uma terrível experiência no Hades, Palas-Atena construiu um instrumento capaz de imitar os sons penetrantes e agudos emitidos pelas górgonas e suas serpentes. Ao soprar a flauta, porém, a deusa sentiu-se deformada como os monstros que conheceu e, assustada, jogou-a fora. Pã, deus disforme por natureza, apossou-se da flauta no intuito de competir com Apolo e sua lira. O sátiro perdeu a competição porque a lira produzia uma melodia que se harmonizava à palavra poética e, consequentemente, trazia tranquilidade ao mundo. A flauta de Pã, ao contrário, emitia um som dissonante que não deixava qualquer espaço para o canto, além de presentificar o terror do mundo dos mortos.
A narrativa mítica de criação da flauta me parece uma figura pré-histórica – no sentido literal da expressão – de As Flores do Mal, com que, em 1857, Charles Baudelaire inaugurou a modernidade poética, substituindo a lira de Apolo pela flauta de Pã. Alguém poderia objetar que o romantismo já havia trazido a modernidade para a poesia, com o culto do eu, mas foi Baudelaire quem deu substância, nome e cor à vivência de um mundo adoecido por séculos de luzes.
Em sua última versão, As Flores do Mal estão divididas em seis partes: “Spleen e Ideal”, “Quadros Parisienses”, “O Vinho”, “As Flores do Mal”, “Revolta” e “A Morte”. Trata-se de um engenhoso sistema lírico-narrativo em que se definem novas concepções de linguagem poética e novas compreensões de história, cristianismo, vida religiosa e morte. Proponho aqui uma leitura desse conjunto como a epopeia do poeta na modernidade[1]. Observando a figurativização do Poeta ao longo do livro, é possível perceber uma progressiva tomada de consciência das condições materiais, existenciais e espirituais impostas ao artista na Paris do Segundo Império. Seu trabalho é heroico porque ele deve sobreviver em meio à cidade tumultuada e asfixiada pelo asfalto e pela iluminação artificial, onde o preço do progresso é, nas palavras de Walter Benjamin, “a desintegração da aura na vivência do choque”. Nessas condições, o poeta é arrancado de seu estado de inocente harmonia com o mundo. Em lugar da lira, a flauta de Pã. Transforma-se, assim, em carrasco de si mesmo, impondo-se as visões agressivas da cidade moderna, com o intuito de manter-se nobre diante do que há de mais repugnante.
Considero “Spleen e Ideal” o primeiro canto dessa epopeia. Oitenta e cinco poemas estão aí agrupados em função de apresentar o Poeta desde seu maldito nascimento (I, “Benção”) até o momento em que assume sua “consciência dentro do mal” (LXXXIV, “O Irremediável”). Ao longo de sua trajetória, o Poeta reconhece que o mundo moderno não é seu lugar (II, “O Albatroz”) e sente saudade do tempo da harmonia (V, sem título). O poema “Correspondências” (IV) é muito importante para a compreensão da nova concepção de linguagem advinda dessa percepção: a linguagem comum não revela as verdades do mundo. Somente o poeta, com sua linguagem imprevisível, ainda é capaz de recuperar a unidade perdida. Com isso, impõe-se a obrigação de reinventar-se para fazer nascer algo novo (X, “O Inimigo”), e começa sua obra com um poema sobre a tarefa da arte (XI, “O Azar”). A partir desse momento, o Poeta passa a perceber problemas antes desconhecidos: “a sombria dor das quimeras ausentes” (XIII, “Ciganos em Viagem”), a singularidade da postura de “Dom Juan nos Infernos” (XV), a insuficiência do conceito tradicional de beleza para os tempos modernos (XVII, “A Beleza”).
Uma nova concepção de beleza faz-se necessária. O terror é o fundamento de seu trabalho artístico (XVIII, “O Ideal”; XX, “A Máscara”; XXI, “Hino à Beleza”). Tal trabalho aguça sua saudade do paraíso. A figura feminina aparece como promessa de ascensão (XIX, “A Giganta”), mas rapidamente revela-se força de queda (XXII, “Perfume Exótico”; XXIII, “A Cabeleira”; XXVI, “Sed non satiata”; XXVIII, “A Serpente que Dança”). Frustrado, o poeta volta-se para a concretização de seu ideal de beleza e escreve “A Carniça” (XXIX). Este poema oferece-nos uma nova concepção de mímese, que rejeita a cópia fiel e preconiza a deformação. Em seguida, o Poeta arrepende-se de ter ido tão longe. Com um poema de penitência (XXX, “De profundis clamavi”), ele lamenta a “luz perversa desse sol” da consciência e inveja a ignorância do animal.
Tarde demais. Só os ignorantes serão perdoados, dizem as Sagradas Escrituras. O poeta já não pode evitar as contradições de sua consciência. Dividido pelo desejo do sublime e pela consciência irônica da queda inevitável, o Poeta segue – experimentando as pequenas e limitadas elevações oferecidas pelo amor (XXXIV, “O Gato”; XXXVIII, “Um Fantasma”; XL, “Semper Eadem”; entre outros), pelo fumo (LXVIII, “O Cachimbo”), pela música (LXVIX, “A Música”) e pela solidão (LI, “O Gato”; LIV, “O Irreparável”; LV, “Conversa”). “O Sino Rachado” (LXXIV) ilustra bem as consequências dessa cisão: “Minha alma está rachada, e quando, em agonia,/ Quer povoar de canções o azul da noite fria,/ Ocorre muita vez que a voz se lhe enfraquece” (p.160). O Poeta conhece, finalmente, seu maior algoz na sequência de quatro poemas (LXXV a LXXVIII) que variam sobre o mesmo tema, o tédio, e possuem o mesmo título, “Spleen”. Sem forças, o herói da modernidade encontra abrigo nesse “taciturno exílio da vontade”, afeiçoando-se ao nada (LXXIX, “Obsessão”; LXXX, “O Gosto do Nada”) e simpatizando-se com a morte (LXXII, “O Morto Alegre”; LXXXII, “Horror Simpático”).
Se no começo de sua jornada modernidade adentro, o Poeta acreditava na salvação por meio do sofrimento, expressava sua fé em que lhe estava reservado um lugar “nas radiantes fileiras das santas legiões”, maldizia aqueles que não podiam ver a luz do “belo diadema etéreo e cintilante” prometido (I, “Benção”), o processo de desencantamento descrito acima deu-lhe uma nova consciência: a ideia de que o poeta seria o guia dos homens na era do progresso não passou de uma ilusão romântica; o poeta, na modernidade, é um triste alquimista que transforma toda promessa de paraíso em inferno (LXXXI, “Alquimia da Dor”). O poeta ganha, assim, a máscara d“O heautontimoroumenos” (LXXXIII), torna-se carrasco de si mesmo. O Poeta assume a impossibilidade de escolher entre o Spleen e o Ideal como um estigma. Ele não quer abrir mão da consciência conquistada, ainda que ilusória. O preço disso é o absurdo de entregar-se a si mesmo como quem se entrega ao inimigo[2] – o Mal capaz de nos abater cresce dentro de nós. Trata-se, pois, de um sacrifício consciente da ausência de redenção (LXXXIV, “O irremediável”).
O Poeta não quer, ao mesmo tempo, abrir mão da poesia. Heroicamente, busca na cidade (“Quadros Parisienses”), no vinho (“O Vinho”) e no abandono a tudo que é destrutivo (“As Flores do Mal”), fugir às banalidades do cientificismo. O obscuro e o dissonante são as únicas possibilidades para a arte. Em sua análise dos “Quadros Parisienses”, Walter Benjamim já destacou o modo como, sensível às peculiaridades do mundo, o Poeta realça o mistério na metrópole moderna. Opõe-se a esse olhar sensível do artista aqueles descritos em seus poemas: o olhar alienado da mendiga ruiva (LXXXVIII), o olhar frio dos sete velhos (XC). O poema “As Velhinhas” (XCI) fala desses órgãos de “imaginar” como que idiotizados, tal qual uma “menina/que se assusta e sorri a tudo que cintila”. São olhos vazios como se tivessem perdido sua função, capazes apenas de uma ação mecânica. O olhar na modernidade está doente. De acordo com Benjamin, sobreviver e matar-se seriam os extremos a que o poeta poderia chegar. Baudelaire parece dizer que herói seria aquele que, consciente de sua cegueira, arrancasse os próprios olhos, sem esperar, contudo, alcançar a sabedoria.
No terceiro canto das Flores do Mal, o Poeta encontra-se com os trabalhadores, os assassinos, os solitários e os amantes em “O Vinho”, “óleo que os músculos enrija aos lutadores” (CIV, “A Alma do Vinho”). Mais do que fuga da realidade, a embriaguez do vinho é valorizada como uma nova episteme, uma forma de conhecer o mundo em suas distorções. Nesse sentido, a imagem do vinho em Baudelaire tem sido associada à sua concepção de poesia. Por fim, o Poeta entrega-se completamente ao ritmo dissoluto da modernidade. O quarto grupo de poemas que dá nome a todo o livro de Baudelaire (“As Flores do Mal”) canta o demônio, que fornece ao Poeta “o aparato sangrento e atroz da Destruição” (CIX, “A Destruição”); celebra o cadáver como mártir da “multidão impura” (CX, “A Mártir”); amaldiçoa as mulheres e suas idealizações romântico-burguesas (CXI, “Mulheres Malditas”); invoca a Orgia e a Morte como duas boas irmãs que oferecem o leito ao Poeta, “o favorito do inferno e cortesão falido” (CXII, “As Duas Boas Irmãs”); dessacraliza a musa, que se junta aos demônios para escarnecer do Poeta (CXV, “A Beatriz”); declara o fim de toda utopia (CXVI, “Uma Viagem a Citera”).
Apesar de ter transformado o mal na força criadora de sua produção, o Poeta sente-se frustrado. No penúltimo círculo de sua infernal epopeia, decide fazer ruir o imaginário cristão responsável por sua miséria existencial. “Revolta” compõe-se de seis poemas centralizados na inversão valorativa das figuras de deus e do diabo. O Poeta admira e identifica-se com a revolta do anjo caído que se fortalece quanto mais é exilado, ofendido, vencido. Cristo aparece apenas como mais um abandonado por deus: “Em que tu foste o mestre enfim? Dize: remorso/ Teu flanco não rasgou mais fundo do que a lança?” (CXVIII, “A Negação de São Pedro”). Seu satanismo, no entanto, não é necessariamente uma heresia, posto que, assim como já havia logrado subverter o discurso progressista usando suas próprias imagens, o Poeta usa a linguagem cristã para demonstrar as falácias do cristianismo, principalmente a mentirosa promessa de redenção. Assim é que o Poeta, abandonado por deus, carrasco de si mesmo, considera legítima “A Negação de São Pedro” (CXVIII), defende a raça de Caim (CXIX, “Abel e Caim”), entoa cânticos a seu irmão de queda, Satã (CXX, “As Litanias de Satã”).
Do paraíso ao inferno; no inferno a consciência de sua ignorância (“Spleen e Ideal”); com a consciência, a poesia do terror (“Quadros Parisienses”, “O Vinho” e “As Flores do Mal”) e do mal (“Revolta”). Em seu último canto, “A Morte”, o Poeta está cansado. Permanentemente identificado aos párias da vida moderna com quem comungou o vinho, busca, como eles, o fim absoluto, pois não há prazer que satisfaça a vontade de consolo e descanso (CXXI, “A Morte dos Amantes”; CXXII, “A Morte dos Pobres”), não há ídolo que sacie a vontade de beleza (CXXIII, “A Morte dos Artistas”). O último poema de As Flores do Mal, “A Viagem” (CXXVI), avalia todas as tentativas de fuga empreendidas pelo homem. Tudo não passa de “Fortuna singular cujo alvo não se alcança”. Em todo lugar, o tédio “cinge com suas teias”. Em qualquer tempo, o homem não passa de “um oásis de horror”. Poiesis negativa, a morte é a única promessa passível de confiança – “Para encontrar no Ignoto o que ele tem de novo!”. O que é o novo? Baudelaire não nos dá uma definição. A trajetória de desencantamento vivida pelo Poeta desde o momento em que a lira de Apolo lhe foi arrancada das mãos até sua entrada na modernidade anunciada pela música dissonante da flauta de Pã obriga a uma postura outra diante do mundo. Não há respostas, não há redenção.
Notas
[1] Marcos Siscar, professor de literatura na Unesp, esboça uma ideia parecida ao tratar do discurso de crise instaurado por As Flores do Mal. Para o crítico brasileiro, o heroísmo do poeta moderno está em sobreviver. Cf. SISCAR, Marcos. “Responda, cadáver”: o discurso da crise na poesia moderna. Alea, Rio de Janeiro, v.9, n.2, dec. 2007.
[2] Já no poema de abertura de As Flores do Mal, “Ao leitor”, essa consciência no mal é figurativizada como “um milhão de helmintos” que crescem em nosso crânio.