Em um ensaio publicado há alguns anos no livro Os Sentidos da Paixão, organizado por Adauto Novaes, o filósofo francês Gérard Lebrun discorre sobre o conceito de paixão. Uma das suas primeiras referências no texto é Descartes, que, no Tratado das Paixões, define a paixão como um “padecer”, um sentido, aliás, já expresso na etimologia da palavra, derivada do grego pathos, que indica “passividade”.
Descartes baseia-se na distinção feita por Aristóteles entre “agir” e “padecer”. Aquele que age encerra em si mesmo um poder de mover ou mudar. Já o padecer, em contrapartida, consiste essencialmente em ser “movido” ou “modificado”. Dentro dessa perspectiva, a condição de quem experimenta uma paixão (e paixão aqui não é entendida apenas no sentido amoroso ou sexual, mas compreende sentimentos como raiva, medo, ódio, inveja, etc.) é sempre a de um ser passivo, que reage à medida que é provocado por um agente externo que faça despertar essas sensações.
Portanto, a paixão, o pathos, é o sinal de que vivemos na dependência permanente do Outro. Somente um ser inteiramente independente jamais sofreria paixões. Mas quem poderia alcançar tal estado? Apenas um deus, responde Lebrun, embora as narrativas homéricas estejam repletas de deuses tomados pelas mais diferentes paixões. Porém, é exatamente por isso, recorda o filósofo francês, que Platão faz a denúncia dos poetas na República, em razão de eles terem ousado, a exemplo do que fez Homero, rebaixar as divindades do Olimpo, atribuindo-lhes as fraquezas humanas.
Porque se há algo humano, demasiado humano, são justamente as paixões. É pelo fato de nós − seres humanos −carregarmos a condição de seres incompletos, dependentes uns dos outros e imperfeitos que estamos sujeitos às mais diversas manifestações da paixão.
Levando em conta esse caráter humano das paixões, Aristóteles, na sua Ética a Nicômaco, expõe o argumento de que o caminho da virtude está em saber manejá-las. Não se trata de tentar expurgar as paixões ou reprimi-las, mas de reagir a elas da forma mais adequada a determinada situação.
Como diz Lebrun, ninguém se encoleriza intencionalmente, mas se algo ou alguém provoca em mim um sentimento de raiva, é a forma como lido com esse sentimento na minha conduta que vai revelar o meu caráter. Não é o caso de colocar a razão e a paixão em polos opostos, como se fossem antagônicas. Um indivíduo virtuoso não é aquele desprovido de paixões, mas quem sabe conviver em harmonia com elas. Ele não só aprendeu a agir de modo conveniente, “mas a sentir o pathos adequado”, como explica Lebrun, em suas ações e reações.
Aristóteles, como se vê, não condena as paixões, como fariam outros filósofos, a exemplo de Platão e os estoicos (que, por sua vez, influenciariam os pensadores cristãos). Mas embora “humanista”, a maneira como Aristóteles trata a questão não deixa de ser extremamente rigorosa do ponto de vista ético e jurídico.
Na ótica aristotélica, o fato de alguém, por exemplo, cometer um crime porque estava dominado por uma forte paixão jamais seria, como ocorre em nossos dias, uma circunstância atenuante. Pelo contrário, aquele que se deixa dominar de tal forma pelas paixões dá prova de uma fraqueza de espírito vergonhosa, só aumentando o seu grau de culpabilidade.
Lebrun termina seu ensaio ressaltando que um dos traços mais característicos da modernidade é o deslocamento das condutas humanas do território da ética para o da terapêutica. “Não consideramos mais as paixões como componentes do caráter do indivíduo, os quais ele deveria governar, mas como fatores de perturbação do comportamento que ele é incapaz de controlar unicamente através de suas forças”, observa.
Se, por um lado, essa forma de considerar as paixões pode parecer menos rigorosa do que propõe a ética aristotélica, porque procura retirar a responsabilidade do agente “apaixonado”, por outro lado, a tendência moderna é tratar esse mesmo agente como um doente.
A literatura moderna reflete bem essa maneira de encarar as paixões. Lebrun contrapõe os heróis shakespearianos aos personagens de Dostoiévski e Proust. Em Shakespeare, a paixão é constitutiva do caráter dos personagens – lembre-se de Hamlet e seu impulso de vingança; da paixão avassaladora entre Romeu e Julieta. Como diz Hegel, sublinha o filósofo francês, os personagens de Shakespeare são profundos porque são apaixonados. Já diante de Raskolnikov de Crime e Castigo, por exemplo, nossa inclinação é buscar um diagnóstico que explique a incapacidade do personagem de se autocontrolar.
Resumindo, o esforço, na modernidade, não é por uma formação ética no sentido de alcançar a virtude, procurando a forma mais adequada de conduzir as paixões, como pretendia Aristóteles. Mas simplesmente tentar “curar” os indivíduos desses afetos.
A paixão virou uma doença – e o caminho mais rápido e seguro para se livrar dela está na farmácia da esquina.