Um homem puxa de um chicote e, com gozo, desfere golpes naqueles em que deseja ardentemente imprimir dor. Outro agride verbalmente seu desafeto com os piores palavrões de que pode lembrar-se naquela hora, digamos, de êxtase, em que se ocupa em uma atividade que, de certa forma, lhe dá prazer realizar. E há até quem pregue publicamente, sem maiores pudores, que adoraria que o País voltasse a viver sob uma ditadura para que, assim, quem sabe, possa colocar algumas pessoas que não gosta em um pau-de-arara que esteja vago. Como puderam perceber com as descrições acima, parece que há algo próximo ao sexual envolvido nessas ideias radicais, não é mesmo?
No Twitter, no Facebook, no WhatsApp, nas redes sociais em geral, há um bom tempo temos visto manifestações calorosas nesse sentido. Gente pedindo intervenção militar, distorcendo os fatos históricos dos anos de chumbo que o Brasil viveu após o Golpe de 1964 para justificar suas posições, gritando histericamente que o País precisa de ordem imposta na marra. Alguns, como um antigo personagem do programa de humor de Jô Soares, não se ruborizam ao clamar: “tem que morrer pra aprender!”. O problema é que essa raiva, esse ódio incontido, esse prazer em querer violentar aquele de quem discorda está se concretizando em atos cada vez mais frequentes.
“E há até quem pregue publicamente, sem maiores pudores, que adoraria que o País voltasse a viver sob uma ditadura para que, assim, quem sabe, possa colocar algumas pessoas que não gosta em um pau-de-arara que esteja vago.”
Os últimos episódios ocorridos, com direito a assassinatos, cenas de confronto, suspeitas de atentados, tentativas de calar atores do jogo democrático não devem acender apenas a luz amarela: eles devem ativar uma sirene que nos alarme a todos de que estamos à beira de uma ruptura institucional. O Brasil adora flertar com esse tipo de perigo e não foram uma ou duas vezes em que desposou essa noiva-cadáver. Quando uma parcela considerável da população começa a pedir cabresto, já estamos em um nível avançado de perigo. Quando um candidato de discurso bélico, sexista, discriminatório e eivado de promessas de vingança está com dois dígitos nas pesquisas para a eleição presidencial, é hora de irmos para o divã.
Os argumentos de quem defende uma intervenção militar são rasos como pires. Eles porém são emblemáticos do momento terrível que vivemos. Aqueles que pedem para ser dominados, que desejam que alguém lhes diga o que podem fazer ou não, que anseiam por governos que persigam qualquer tipo de oposição estão, de certa forma, passando um recibo: gostam de bater, mas também de apanhar. Como já falamos em divã, que tal recorrermos a Freud. Será que ele explica tudo mesmo? “O sádico é sempre e ao mesmo tempo um masoquista, ainda que o aspecto ativo ou passivo da perversão possa ter-se desenvolvido nele com maior intensidade e represente sua atividade sexual predominante”, escreve em seus Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade.
“Os argumentos de quem defende uma intervenção militar são rasos como pires. Eles porém são emblemáticos do momento terrível que vivemos. Aqueles que pedem para ser dominados, que desejam que alguém lhes diga o que podem fazer ou não, que anseiam por governos que persigam qualquer tipo de oposição estão, de certa forma, passando um recibo: gostam de bater, mas também de apanhar.”
Vamos trazer essa breve definição do pai da Psicanálise para nossa realidade pública. Vamos, na verdade, cotejá-la com as descrições do primeiro parágrafo deste texto. Um homem de chicote na mão, um monte de gente apoiando um candidato que homenageia torturadores, uma defesa desabrida a métodos violentos. Sadismo em estado puro. Mas sadismo contra quem? Afinal, uma ditadura costuma ser tenebrosa para quase todo mundo, já que todos teriam de se submeter a leis antidemocráticas, condenados a apenas concordar, a dizer amém, a abrir mão de sua autonomia. Masoquismo também em estado bruto. Batem e apanham com a mesma desenvoltura, extasiados, em transe, sem medir consequências, sem compreender as feridas causadas e sofridas.
Em outro texto clássico, Freud fala da “Psicologia das Massas”, revelando o quanto é desafiador sair de uma espiral em que as opiniões se juntam para formar uma espécie de atmosfera reinante. O problema é que no Brasil esse ambiente tem se tornado tóxico e podemos todos nos asfixiar por tal envenenamento. Mas quem liga para a morte lenta se podemos, de maneira praticamente catártica, libertar todos os nossos demônios, colocar para fora todas as nossas mais impublicáveis fantasias, nos colocarmos em posição de mando ou de dominado como se estivéssemos em um mal disfarçado joguinho obscuro? Ganhamos salvo-condutos para sermos Sade em sua pior concepção. Como dizia o filósofo George Bataille ao estudar o erotismo, a morte e o prazer andam juntos nesse registro.
“Mas quem liga para a morte lenta se podemos, de maneira praticamente catártica, libertar todos os nossos demônios, colocar para fora todas as nossas mais impublicáveis fantasias, nos colocarmos em posição de mando ou de dominado como se estivéssemos em um mal disfarçado joguinho obscuro?”
Certa vez, topei com uma pequena e estridente manifestação pedindo a volta da ditadura militar. Um punhado de pessoas que gritavam, gritavam, gritavam. Urros que diziam muito do nível de suas ideias, do que acreditam ser bom. Elas querem que os inimigos sejam jogados em celas; elas querem limitar a liberdade; querem acorrentar pensamentos; querem amarrar sonhos; desejam escravizar esperanças; querem calar as vozes dissonantes com mordaças. São sádicas a ponto de aceitarem serem aprisionadas junto. São também masoquistas. Seus tons, para parafrasear o best-seller sadomasô do momento, são mais escuros. O prazer que sentem baseia-se na agressão. O futuro que querem é o dos porões. Uma fantasia político-sexual não consensual. Aí não, né!
Ótimo texto! Obs.: o nome do filme é “Salò ou os 120 Dias de Sodoma”.
Obrigada por avisar, Adriano. Vamos corrigir!
Parabéns Rogério Borges.
Pensamento e posicionamento fortes para uma realidade que nos aflige. É contemporâneo e tão necessário
Uma realidade mais assustadora quando o processo que a define é cíclico. ‘Déjà vu’, 1964, 1954…
A sociedade regride em seu processo de vida!