“A maneira pela qual escapamos do real designa claramente
a nossa realidade íntima”
Gaston Bachelard
Extraí essa frase “Cada casa é um caso” do livro do arquiteto Carlos Solano, Casa Nossa de Cada Dia. A casa e o sujeito. O sujeito e a casa. Reviramentos, cruzamentos entre dois saberes. De um lado, a arquitetura que faz o arquiteto escutar e operar nesse lugar do desejo e que se inscreve na singularidade de um sujeito. Por outro lado, a psicanálise que ressalta o desejo inconsciente do sujeito. Foi na escuta de tantos casos, principalmente de crianças, que cheguei à casa do sujeito. Ou ao sujeito da casa… Significantes.
Então, arquitetura e psicanálise pertencem a diferentes campos de saber, mas podemos encontrar algumas intersecções, pois uma análise e a construção de uma casa só são possíveis a partir de uma escuta ligada ao desejo, articulação já pensada, ente outros, pelo arquiteto urbanista e psicanalista pela Escola Letra Freudiana, Jorge Mário Jauregui: “Produto da experiência de anos na escuta de demandas projetuais, a intersecção com o campo da psicanálise nos alerta para a distinção fundamental em relação com o campo do desejo, que é o campo freudiano”. No artigo Psicanálise e Arquitetura, trabalha temas psicanalíticos, como a diferença entre necessidade, demanda e a noção de objeto a. Diz que, ao se aventurar num projeto, este é apropriado pelo desejo inconsciente.
Na tentativa de esboçar as relações entre psicanálise e arquitetura, projeta uma casa inspirada na garrafa de Klein – um objeto topológico, que permite a comunicação do interior com o exterior, como numa banda de Moëbius. A banda de Moëbius é uma invenção do matemático Moëbius, e trata de um objeto que pode ser constituído com uma tira de papel com e num movimento de torção sobre ela mesma, colada nas extremidades. Após a realização da torção, o direito e o avesso estão contidos um no outro. Nesse sentido representa, para a psicanálise, o sujeito do inconsciente. A garrafa de Klein é outro objeto topológico que demonstra as relações interno/externo. Trata-se de uma esfera cujo fundo se liga ao gargalo, o interior está em continuidade com o exterior. A arte de Maurits Cornelis Escher, artista gráfico holandês, é um exemplo, como na litografia Espelho Mágico (1946) e o Laço de Moebius (1960). A casa permite o exterior atravessar o interior pelos fluxos de luz, sons, imagens, movimento e o tempo, aproveitando o entorno natural. No interior da casa, vidros fazem interligações, paredes ao mesmo tempo conectam e dividem espaços de usos contínuos, separam espaços íntimos.
Topologia é o estudo da ciência dos espaços e de suas propriedades. Descreve o próprio espaço levando-se em conta a invariância do objeto. O espaço em si não encerra a dimensão de profundidade, a famosa terceira dimensão. Na psicanálise lacaniana, a topologia é o espaço próprio da clínica.
Outras articulações entre esses dois saberes se fazem presentes na história do sujeito: quem não se lembra da casa da infância? Quem não tem uma história para contar? A casa recheada de histórias, enigmas, simbolizações, enfim, que permanecem em estado de rébus, quebra-cabeças, e que segundo Michel Certeau, francês, autor do livro A Invenção do Cotidiano: Morar e Cozinhar, com formação em filosofia, letras clássicas, história e teologia, “estão enquistadas na dor ou no prazer do corpo”.
Como o sujeito, a casa também é fantasiada antes de ser real, como um filho.
Philippe Ariès, historiador, que escreveu o livro História Social da Criança e da Família, vê a casa como um elemento fundamental para a compreensão da vida privada, em que vida privada e cotidiano se confundem, em decorrência das mudanças ocorridas na casa. A casa responde adequadamente às necessidades do sujeito e ao seu desejo.
Na escuta de Carlos Solano, existem fases que estão vinculadas aos elementos da natureza para fazer o projeto de uma casa:
1ª fase – ligada ao elemento Fogo, a inspiração. Seria como numa primeira entrevista para a psicanálise, momento em que o sujeito se apresenta e fala da sua singularidade;
2ª fase − elemento Água – momento de narrar sua história, de trazer à tona a casa da sua infância, a família para a escuta do arquiteto;
3ª fase – elemento Ar – quais são as possibilidades de vivência na casa atual. Falar sobre esse processo, segundo Solano, “pela imaginação e associação livre vai se abrindo um horizonte cada vez maior…”;
4ª fase – elemento Terra – momento de concluir, de realizar o projeto.
Seriam as articulações do tempo lacaniano: instante de ver, tempo para compreender, momento de concluir?
Tais elementos são percorridos poeticamente por Gaston Bachelard na Poética do Espaço, com algumas pinceladas psicanalíticas, ao se definir o significante casa:
é o nosso canto do mundo… A casa como o fogo, como a água, nos permitirá evocar, na sequência de nossa obra, luzes fugidias de devaneio que iluminam a síntese do imemorial com a lembrança. Nessa região longínqua, memória e imaginação não se deixam dissociar… Assim, a casa não vive somente o dia a dia, no curso de uma história, na narrativa de nossa história… Antes de ser jogado no mundo, o homem é colocado no berço da casa.
Esses mesmos elementos também são utilizados por uma técnica milenar oriental de harmonização de ambientes – o Feng Shui. Toda casa tem uma história. Toda casa tem uma alma.
Feng Shui significa: Feng – vento, que simboliza a manifestação física do estado fluido mutável de todas as coisas, e Shui – água, o estado fluido da vida na terra.
O Feng Shui faz você se voltar para seus espaços íntimos e observar, para poder cuidar.
Nossos espaços psíquicos refletem nosso espaço físico, como um espelho.
O Feng Shui remete a várias técnicas de reorganização espacial ou ambiental para o estabelecimento do equilíbrio dinâmico entre a edificação, o entorno e o homem, sobretudo nos aspectos de saúde, relacionamento, realização e prosperidade.
E não são esses fatores também que nos levam para uma análise? Angústias de um amor perdido, de um insucesso, da doença…
Formas diferentes e também muito próximas – por se tratar de um sintoma do sujeito − de cuidar das nossas pedras no sapato. Mas existem pedras, pasmem, como plantas, que “curam”.
Mais remotamente, o Feng Shui era denominado de Kan Yu, a alquimia entre o Céu e a Terra. Como diz Shakespeare, “Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar a nossa vã filosofia”.
A conexão entre psicanálise e Feng Shui permite pensar as relações do sujeito com o seu lugar ou a falta de lugar, e ainda o lugar da falta. Questões da natureza e do homem, da natureza e da cultura, da casa e do fora da casa, do privado e do público… noções opostas de uma lógica paraconsistente (Newton da Costa), que me faz retornar ao nosso grande escritor mineiro, nascido em Codisburgo, a cidade do coração, Guimarães Rosa, e, parafraseando-o, reitero que o ser/tão é dentro da gente.
Texto esclarecedor para quem, como eu, mal conhecia o Feng Shui.
E vai mais alem, quando o associa à psicanálise e instiga a “pensar as relações do sujeito com o seu lugar ou a falta de lugar ou o lugar da falta.”
Salve Beatriz, parabéns!
Excelente texto Beatriz, adorei. Gostaria de conversar mais sobre esse tema – Arquitetura e Psicanálise.
Abraços