No romance Tempos Difíceis, o escritor Charles Dickens faz uma paródia da educação recebida pelo filósofo inglês John Stuart Mill (1806-1873). Na história, os filhos de um utilitarista convicto, Thomas Gradgrind, são submetidos a um método de ensino rígido, frio e mecânico, pelo qual as pobres crianças são obrigadas a memorizar um volume enorme de dados – para o implacável Gradgrind, um “homem de fatos e cálculos”, as brincadeiras lúdicas da infância eram pura perda de tempo.
Como as crianças retratadas no livro de Dickens, Mill também era filho de um adepto rigoroso da doutrina utilitarista, o filósofo James Mill (1773-1836), e sua infância parece ter sido vivida de modo a não “perder tempo” com nada que não fossem os trabalhos do intelecto. Aos 10 anos de idade, ele lia e escrevia em grego e latim, dedicava-se aos estudos de matemática, direito, filosofia, história, lógica, economia e, como ninguém é de ferro, também reservava um pouco dos seus exíguos momentos de folga à literatura.
As proezas desse garoto prodígio − que mais tarde também seria reconhecido como um dos principais nomes do utilitarismo e que deveu sua espantosa educação não somente a seu pai, mas também a Jeremy Bentham (1742-1832), o fundador dessa corrente de pensamento − de fato deixavam admirados os seus contemporâneos. Mas havia quem o enxergasse como uma espécie de “monstrinho”, a exemplo de Dickens.
Deve-se admitir, no entanto, que Dickens apresenta uma caricatura do utilitarismo. Por outro lado, não se pode esquecer que os adeptos dessa doutrina, com suas complicadas equações para calcular o “índice” de felicidade para o maior número de pessoas (esquecendo-se que o resultado dessa soma poderia representar a opressão de minorias), chegaram a defender algumas aberrações.
É o caso do Panopticon, um projeto de penitenciária desenvolvido por Bentham, cuja arquitetura peculiar permitia que os presos fossem vigiados o tempo todo, sem um minuto sequer de privacidade. Bentham acreditava que, sob esse sistema, os presos (não só criminosos, mas também os considerados “indesejáveis” socialmente, como os moradores de rua) trabalhariam com afinco – e assim a sociedade seria beneficiada como um todo. Todavia, as cadeias na Inglaterra construídas sob suas prescrições não foram exatamente um sucesso. O Panopticon, porém, permaneceu como um ícone da sociedade moderna, que funciona sob o modo da vigilância e da disciplina, como Miguel Foucault analisa de forma brilhante em seu Vigiar e Punir.
Mas voltando a John Stuart Mill, se é verdade que ele, como bom herdeiro, não negou o legado dos seus preceptores, por outro lado, também não se transformou no “monstro” frio e calculista que o romance de Dickens sugere. Pelo contrário, revelou-se um pensador muito mais sensível e sofisticado que seus mestres, notabilizando-se pela defesa incansável dos direitos individuais e por ser um aliado do movimento pela emancipação das mulheres, certamente influenciado por sua mulher e grande amor da sua vida, a líder feminista Elizabeth Harriet Taylor.
Publicado em 1859, o livro Sobre a Liberdade é uma das obras mais influentes de Mill. Neste pequeno tratado, o pensador concebe a liberdade humana a partir de três dimensões: em primeiro lugar, ele destaca a liberdade de consciência, num sentido amplo que compreende a liberdade de pensamento e de opinião; em segundo, aponta a liberdade de gosto e de inclinações, argumentando que os indivíduos são inteiramente livres para conduzir suas vidas da forma que bem entenderem, desde que não prejudiquem os demais, e, por fim, realça a liberdade de união com outras pessoas, para qualquer objetivo, desde que, mais uma vez, essa associação não acarrete danos para os outros.
Todo o esforço de Mill é no sentido de reafirmar as garantias em favor do indivíduo, assegurando que ele não seja oprimido nem pela sociedade nem pelo Estado. Para o filósofo, “a única liberdade que merece esse nome é a de perseguir o nosso próprio bem de nossa própria maneira”, sempre tendo o cuidado de acrescentar, em contrapartida, que essa busca do nosso próprio bem deve ser realizada de maneira a “não tentarmos privar os outros da sua liberdade, ou obstruirmos seus esforços para obtê-la”. Ou seja, naquilo que diz respeito somente a si mesmo o indivíduo é soberano. Com respeito ao meio social em que vive, ele só se obriga nas situações que envolverem outras pessoas.
O liberalismo individualista de Mill é, sem dúvida, passível de inúmeras críticas. Por centrar seu foco no sujeito, na sua autonomia, Mill acaba cedendo ao risco de conceber o indivíduo como uma mônada, apartado dos demais, desconsiderando a vida coletiva. Sob esse aspecto, um pensador liberal contemporâneo de Mill e que foi seu amigo, o francês Alexis de Tocqueville, apresenta uma visão muito mais complexa e abrangente da liberdade, concebendo-a não só na sua dimensão de independência pessoal, como Mill, mas também como sinônimo de participação política, portanto, estreitamente associada ao exercício da cidadania. Além do mais, soa incômoda e pouco democrática a insistência de Mill no estabelecimento de uma “elite esclarecida” que conduziria as massas “ignorantes”.
Apesar dessas restrições, o libelo de Mill em favor da liberdade continua muito atual num momento como o nosso em que as ameaças contra as mais elementares liberdades individuais ressurgem de todos os lados e até de quem deveria, por obrigação, defendê-las, como o Poder Judiciário. Em uma das passagens de Sobre a Liberdade, Mill afirma que calar a voz de uma pessoa equivale a “roubar a humanidade”, tanto no presente quanto no futuro, porque se a opinião dessa pessoa for correta, os seres humanos veem-se privados da oportunidade de trocar o erro pela verdade e, se ela estiver equivocada, perde-se “a percepção mais clara e vívida da verdade, produzida pela colisão desta com o erro, um benefício tão grande quanto o primeiro”.
Nestes tempos em que a noção de “verdade” parece sucumbir diante das realidades paralelas das redes sociais, o apelo de Mill pode soar um tanto quanto ingênuo. No entanto, é difícil não concordar com o autor quando ele diz que “a verdade ganha mais pelos erros daqueles que, com o devido estudo e preparação, pensam por si mesmos, que pelas opiniões verdadeiras daqueles que somente as sustentam porque não se dão ao incômodo de pensar”.
Ótimo texto.