Um dia me dei conta de que minha formação se deu em um contexto marcado pelo “discurso de crise”, discurso esse que atravessava e desestabilizava o conjunto de conhecimentos construídos em torno do literário – o ensino, a crítica, a história e a teoria – há mais ou menos 200 anos.
A graduação havia me dado o senso do repertório literário e a consciência de que morreria sem ler tudo que já sabia ser importante – eu tinha então uma lista megalomaníaca e ela só aumenta. Caiu-me nas mãos, à época, o Cânone Ocidental, de Harold Bloom (1995). A princípio, interessava-me apenas conferir a lista daquele professor norte-americano que eu pouco conhecia, mas o prefácio e o prelúdio trouxeram-me uma novidade: a república espiritual das letras estava em guerra.
Antes de descrever e comentar os 26 autores participantes de seu cânone, o crítico demora-se em introdução bastante provocativa e polêmica contra o que denomina Escola do Ressentimento (composta por professores de linhagem marxista, feminista, multiculturalista), a quem acusa de sacrificar o valor estético em nome da harmonia social e do engajamento político. Muito intrigada com o que se insinuava como um debate mais profundo, saí em busca das peças desse quebra-cabeças que acabou conhecido como Querela do Cânone no final do século XX.
Enquanto pesquisava, questionava-me sobre como nunca havia refletido sobre a noção de valor – se está na obra ou fora dela; estando fora, o quê ou quem o definiria; como reconhecê-lo; questões pertinentes para uma leitora que, ingenuamente, julgara suas escolhas da adolescência como arbitrárias e passara a valorizar mais o trabalho pronto da crítica canonizada em favor de uma confirmação esquemática de sistemas de valor quase nunca explicitados. Eu não tinha percebido como qualquer programa de disciplina literária era, no fundo, um cânon e assim expressava a concepção de literatura de quem o elabora.
Foi aí que passei a compreender o vínculo forte entre coisas que me pareciam distintas: a relação política e social entre teoria literária, crítica literária e história literária. Enxergava então como nossas escolhas literárias são orientadas por modelos teóricos que definem visões de mundo, por concepções de linguagem que implicam posturas políticas na vida vivida e estão, portanto, sujeitas a releituras críticas e ao contínuo debate.
Em termos concretos, descobri que as farpas de Harold Bloom produziam-se em um contexto de reestruturação metodológica e curricular dos estudos literários nos departamentos de Letras nos EUA. As razões eram, sim, sociais – a luta intelectual pela expressão de uma identidade própria por parte de grupos étnica e sexualmente definidos e excluídos. Nesse ambiente multicultural, o “cânone tradicional” (a expressão pode parecer redundante, mas hoje vemos a possibilidade de diferentes e variados cânones) demonstrava sua face de repressão e discriminação a serviço de interesses dominantes, do poder branco e masculino e de uma ideologia de contornos patriarcais, racistas e imperialistas.
Nos EUA, tal reinvindicação desdobrou-se em uma crise institucional do ensino de literatura, em que alguns departamentos dessa área foram dissolvidos, como se pode conhecer da experiência da professora Dorothy Figueira em artigo publicado no início dos anos 2000 (“A literatura comparada e a ilusão do multiculuralismo”, 2002). O século XXI começava, para mim, com promessas apocalípticas no horizonte de ensino e de reflexão sobre literatura.
De um lado, as exigências legítimas do multiculturalismo ameaçavam os estudos literários, quem sabe a própria literatura, de dissolução – como atenuar o impacto de uma pergunta como aquela feita por Marcos Natali: “O que aconteceria se, em um cenário hipotético, aquém ou além do literário, a literatura não coincidisse com a justiça? Em outras palavras, se tivéssemos que escolher entre a literatura e a justiça, onde ficaria nossa fidelidade?” (“Além da literatura”, 2006).
De outro, o elitismo de Harold Bloom, para quem foi um “erro acreditar que a crítica literária podia tornar-se base para a educação democrática ou para melhorias da sociedade”, propiciava uma séria desconfiança do Humanismo. Um professor de literatura em formação – que caminho deveria seguir? Deveria ele “atirar a flauta aos peixes surdo-mudos do mar”, como fizera um dia o Anfion de Cabral?
Sem uma solução teórica e muito angustiada (afinal havia tanto a saber), resolvi enfrentar o problema de outra maneira: sendo professora.
Em vez de aceitar a morte da literatura e a crise no ensino de literatura, sendo professora tento propor a reinterpretação desses fenômenos como sinais de uma transformação cultural em que a poesia, o drama, as narrativas de ficção, bem como os discursos que se voltam sobre eles continuam a jogar um papel importante. Tenho comigo que é em sala de aula que os problemas e crises acumulados durante as leituras se iluminam.
Aprendi com uma grande professora que o tempo da docência é múltiplo: chronos (uma concepção linear que induz falsamente a uma aparência de causalidade) e kairos (tempo oportuno, da ocasião que se pega ou se deixa, do não previsto e do decisivo) simultaneamente. Quando uma leitura literária nos conduz à metamorfose, aí vale a pena demorar, parar, descrever o impasse. Dessas paradas, consigo quase sempre extrair algo que me ajude, senão na solução de problemas, ao menos na reformulação de determinados raciocínios e sentimentos, no refinamento das perguntas e intuições que conduzem minhas pesquisas, no aprimoramento reflexivo das próprias aulas.
E se a literatura fosse mais uma vez expulsa da república, eu faria parte de uma resistência espiritual-literária porque sei, com Said, que “o exilado insiste ciosamente em seu direito de se recusar a pertencer a outro lugar” (Reflexões sobre o Exílio, 2003).