O líder religioso de uma aldeia Paiter Suruí, que viveu isolada até o final dos anos 60 em Rondônia , passa a ser discriminado por sua própria comunidade, convertida ao cristianismo por uma igreja evangélica. Esse drama incomum e quase surreal é o tema do curta-metragem brasileiro Ex-Pajé, que abre a programação oficial do 20º Festival Internacional de Cinema Ambiental (Fica) nesta terça-feira (5 de junho) na cidade de Goiás, às 20h, no Cine Teatro São Joaquim
Ao todo, esta edição do festival, que prossegue até o dia 10, vai exibir 101 produções, agrupadas em oito mostras, entre obras de ficção, documentário e animação, com destaque para uma retrospectiva dos títulos premiados ao longo de duas décadas de Fica.
Ex-Pajé, premiado na Mostra Panorama no Festival de Berlim de 2017, surgiu do espanto do diretor paulista Luiz Bolognese, que em 2015 esteve em Rondônia para dirigir uma série sobre pajés. Ao chegar numa aldeia Paiter Suruí, o cineasta não só descobriu que não havia mais pajés no local, mas também que o antigo pajé agora era zelador de uma igreja evangélica.
Com esse ponto de partida e misturando documentário e elementos de ficção, o diretor traça um painel sobre a intolerância religiosa e a perda das referências culturais dos indígenas brasileiros − o que ocorre, não por acaso, numa escala tão assombrosa quanto a tomada dos seus territórios, motivo de cobiça graças à expansão das fronteiras agrícolas, da pecuária e da exploração não sustentável da madeira e minérios. Ex-Pajé, que sintetiza a questão socioambiental que guia a curadoria dessa edição, será exibido fora de competição.
Na quarta-feira, 6 de junho, tem início a mostra competitiva do festival, com 22 filmes. Concorrem a R$ 280 mil em prêmios sete longas-metragens, um média-metragem e 14 curtas-metragens, provenientes de nove países: Brasil (10 filmes), Portugal (3 filmes), Espanha e Itália (2 filmes, cada um), Argentina, Irã, México, França/Suíça e Uruguai (1 filme, cada um). Da seleção brasileira de filmes ambientais, 4 títulos são de Goiás. Os outros concorrentes são do Rio de Janeiro e de Pernambuco (2 filmes, cada um) e do Paraná e do Ceará/Rio de Janeiro (1 filme, cada um). A mostra competitiva será exibida no Cine Teatro São Joaquim e no Cine UEG Cora Coralina, das 15h30 às 17h30 e das 19h às 20h30 de quarta a sexta-feira. No sábado, apenas das 15h às 16h30.
Retrospectiva do festival
A retrospectiva Fica 20 Anos: A Força de Um Legado traz algumas das obras que se sobressaíram desde a primeira edição até o ano passado. Com apenas seis títulos − a iniciativa é boa e merece continuidade nas próximas edições −, essa mostra será exibida a partir das 22 horas, no Cine Teatro São Joaquim, de quarta a sexta-feira.
Recife de Dentro pra Fora, dirigido por Kátia Mesel, foi o primeiro vencedor do Grande Prêmio Cora Coralina, em 1999, que calou com sua beleza e profundidade o burburinho da primeira edição do festival. O poema Cão sem Plumas, obra-prima de João Cabral de Melo Neto, é a voz narrativa de um documentário ao mesmo tempo informativo e comovente sobre o percurso do rio que corta a capital pernambucana.
De protagonista de cartão-postal do centro histórico da cidade nordestina, uma das primeiras e mais belas do Brasil, ele torna-se em poucos quilômetros depósito de esgoto in natura. Navegar com o Capibaribe junto com a câmera da cineasta por 15 minutos é um mergulho que desvenda as contradições das grandes cidades brasileiras e seus abismos sociais, que por sua vez se refletem nas péssimas políticas públicas e práticas de saneamento básico em todo o País.
Corumbiara, de Vicent Carelli (vencedor do Grande Prêmio Cora Coralina 2009), resgata uma história de 20 anos, começando em 1985, na Gleba Corumbiara (RO), palco de um massacre de índios que, apesar de denúncias, foi ignorado pelas autoridades e, acusa o cineasta, pela mídia. Ao voltar ao local, vários anos depois, ele encontra poucos sobreviventes da chacina, índios ariscos que, praticamente sozinhos, tentam manter o que restou da cultura de seus antepassados.
Como eles falam um dialeto pouco conhecido, até estabelecer um canal de comunicação com os sobreviventes é difícil. Acompanhar essas tentativas de diálogo entre a equipe do documentário e a tribo são outro trunfo do longa-metragem, que usa essa dificuldade como elemento de suspense e de alerta sobre a perda da diversidade cultural de um país que não defende todos os seus moradores como deveria.
Conhecido e respeitado por usar o audiovisual como linguagem e instrumento na militância pela causa indígena, Carelli é o criador do projeto Vídeo nas Aldeias, que desde 1986 dedica-se ao cinema indigenista e que, a partir de meados dos anos 90 , fomenta a formação de cineastas indígenas em suas próprias aldeias. Neste ano foi lançada uma plataforma de streaming (transmissão on-line) com as produções da ONG: http://videonasaldeias.org.br/
Único filme goiano dessa edição da mostra Fica 20 anos , o documentário Rapsódia do Absurdo, de Cláudia Nunes (Melhor Produção Goiana 2007), projeta na mesma tela dois episódios violentos da luta pela terra em Goiás, seja no campo, seja na cidade. A cineasta, premiada por esse e outros documentários como Número Zero, vale-se de imagens de arquivo e uma linguagem poética para trazer à tona as semelhanças entre os conflitos entre as forças do Estado e os movimentos populares, seja pela reforma agrária ou pelo direito à moradia, na Fazenda Santa Luzia, em Aruanã, e no Parque Oeste Industrial, dentro de Goiânia.
A animação O Menino e o Mundo de Alê Abreu (Troféu Carmo Bernardes de Melhor Longa 2014) concorreu ao Oscar de Melhor Longa de Animação e encantou as plateias do mundo todo com seus traços lúdicos e simples sobre as aventuras de um menino chamado Cuca. Ele vive numa pequena vila, no interior de um país mítico. Seu sonho é reencontrar o pai, que deixou a família e viajou para a cidade grande em busca de trabalho.
Movido pela saudade, o garoto deixa seu lar e parte numa jornada em busca do pai e, pelo caminho, se depara com muita miséria, vendo camponeses explorados, trabalhadores sem direitos, artistas de rua à beira da mendicância, militares cruéis e autoritários, fábricas abandonadas e muita poluição e degradação ambiental. O rapper Emicida ajuda a contar essa história ilustrada por uma mistura de técnicas de animação e até por imagens documentais.
A ficção Recife Frio, de Kleber Mendonça Filho (Troféu Acari Passos de Melhor Curta 2010), começa com um quê de realismo fantástico: a ensolarada Recife, de repente, sofre uma queda drástica de temperatura e se torna uma cidade com uma média de 10 graus celsius. Humor negro, jornalismo sensacionalista e até os filmes B de ficção científica são utilizados pelo diretor para construir uma irônica crítica social.
Se no calor os mais abastados de Recife vivem em apartamento luxuosos à beira-mar e relegam os empregados domésticos a quartinhos sem janela, mofados e quentes, quando chega esse estranho inverno a situação se inverte e agora os cubículos dos criados é que são o lugar mais confortável das coberturas .
A indústria do turismo também sofre com a mudança climática, perdendo os turistas que antes eram atraídos pelo calor da cidade. Os mendigos da capital pernambucana, por sua vez, continuam desassistidos como sempre e se viram como podem acendendo fogueiras nas ruas. O filme, um curta-metragem, foi premiado em dezenas de festivais no Brasil e no exterior – uma prévia do sucesso do diretor Kleber Mendonça Filho, que anos depois dirigiu o longa Aquarius.
O filme que fecha essa retrospectiva vem de Portugal: Ainda há Pastores, Grande Vencedor do Fica 2009, que resgata a tradição secular do pastoreio de cabras na região da Serra da Estrela. Porém, o filme soa mais como uma despedida, já que esse modo de vida se mostra praticamente incompatível com as exigências do consumo e das relações de trabalho no mundo atual.
Evolução do cinema goiano
A Mostra da Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas de Goiás (ABD), a ABD Cine Goiás, é outra atração do festival que merece um olhar mais atento. A participação goiana no Fica, que começou tímida, aos poucos conquistou mais espaço e projeção − até porque qual o sentido do uso do dinheiro público dos cofres estaduais senão também para estimular e divulgar a produção local?
Além da participação na mostra competitiva principal, um espaço na grade específico para o audiovisual goiano é reflexo da evolução do cinema feito em Goiás, antes fruto do idealismo de alguns poucos corajosos da própria ABD e de cineclubes como o Antônio das Mortes e João Bênnio, que floresceram entre o final dos anos 80 e começo dos anos 90.
Hoje a mostra da ABD, uma das poucas entidades de fomento ao cinema no Estado pré-Fica, tem o respeito do público e dos realizadores. Distribuindo R$ 120 mil em prêmios, a edição 2018 traz 20 títulos, com temática livre. A seleção foi distribuída em três sessões: Vidas Narradas, Humano-Paisagem e A (des)ordem dos Sentidos. A exibição, de quarta a sexta, será a partir das 20h30 no Cine Teatro São Joaquim.
Confira a programação completa em: