O diretor Albert Dupontel apostou em algo menos óbvio para tratar de muitos temas delicados, que voltam à tona na França no ano em que é lembrado um século do término da Primeira Guerra Mundial. No filme Nos Vemos No Paraíso (uma das atrações da Mostra de Cinema Francês Varilux, em cartaz até 20 de junho no Cinema Lumière, do Shopping Bougainville), ele lança mão da mímica em vários momentos para expressar o que talvez seja inexprimível em palavras. Os horrores do conflito, com sua profusão de mortes e mutilações tenebrosas, são simbolizados por um conjunto de personagens que trazem seus estigmas e precisam lidar com eles da maneira que puderem.
Uma das primeiras sequências – espetacular, por sinal – mostra a miséria das trincheiras já nas vésperas do armistício entre França e Alemanha, no final de 1918. Soldados exaustos, ansiosos para que o conflito termine e eles possam comemorar a sobrevivência, compõem o retrato da falência da civilização. Dois homens, unidos pelos laços firmados pela tragédia, estabelecem uma espécie de cumplicidade, que fica ainda mais forte após a ação famigerada de um oficial que sacrifica dois de seus soldados para reiniciar uma sangrenta batalha. Uma salva o outro do final, mas paga um preço altíssimo, ficando desfigurado durante a ação.
Com o fim da guerra, ele se recusa a voltar para sua família em Paris, com quem tem problemas. Pede ao amigo que salvou para que forje sua morte, enganando seu pai, um poderoso político da capital francesa. O oficial inescrupuloso que provocara o arrefecimento da batalha, porém, descobre tudo e usa essa informação para se aproximar da irmã daquele que se faz passar por morto, adquirindo poder e liderando um ardiloso esquema fraudulento de venda de caixões e promoção de sepultamentos de homens mortos na guerra. Dois anos depois, os destinos de todas essas personagens voltam a se encontrar, mas já com uma carga a mais de vivências, mágoas e tristezas.
Nos Vemos No Paraíso, além de um roteiro inteligente e atuações muito calibradas, é um misto de alegoria da dor e uma homenagem à memória. A alegoria fica por conta para a solução que o homem desfigurado, após um longo período de recuperação dos ferimentos e de depressão por sua situação, encontra para voltar à tona, à sua maneira. Ele usa seu talento artístico – um desenhista genial – para fabricar máscaras, algumas carnavalescas, outras da melhor tradição clown francesa. Com elas, movimenta o sentido das ações, representa estados de espírito, ilustra sentimentos profundos, alegrias e tristezas. Sempre ao lado de uma menina que traduz seus sons guturais.
O elogio à memória está na coragem de revelar o quanto a guerra é inútil, ainda que ela tenha sido justificada pela sobrevivência da nação. Na Primeira Guerra Mundial, a França resistiu bravamente à investida alemã e seus combatentes foram considerados heróis. Heróis, porém, que se misturaram a crápulas, a negociatas de toda ordem, a injustiças inomináveis, à ausência de sentido para batalhas que ceifaram tantas vidas. Revisitar o passado sem ufanismos, sem cegueiras seletivas, sem mitos absurdos. Essa lição ainda precisamos aprender. No cinema, até conseguimos dar alguns passos nessa direção. Na França, o cinema também está à frente da política, só que mais ousado que aqui.
Veja a programação da Mostra Varilux em Goiânia no site
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