Tudo começou quando dei a primeira olhada na programação teatral dos palcos paulistanos para aproveitar bem um final de semana na capital paulista. Em suas centenas de teatros, São Paulo sempre apresenta uma gama enorme de opções. Das casas mais badaladas ao teatros menores, numerosos espetáculos convidam para um programa cultural. Mas eis que começo a reparar que a maioria das peças são comédias bobinhas ou stand up produzidos em escala industrial. É preciso garimpar e a amiga que estava comigo fez isso, sacando desse caldo duas boas sugestões.
A peça Diálogo Noturno com Um Homem Vil, que estava em cartaz no experimental teatro de bolso Ágora, em meio a casarões do Bairro de Bela Vista, foi a primeira pedida. Prato para poucos apreciadores em um espaço que não comporta nem uma centena de espectadores. Muito próximos à plateia, os atores Ailton Graça e Celso Frateschi, rostos conhecidos de novelas globais, travam um embate forte e tenso, interpretando com esmero o texto do dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt, que foi escrito inicialmente para ser apresentado em programas radiofônicos.
Não muito longe dali, na região do bairro do Paraíso, outro palco pouco convencional – um teatro inacabado em que a plateia se senta em cadeiras de plástico e os atores apresentam seu trabalho em um vão sem ribalta – abriga a peça Pi – Panorâmica Insana. Teatro físico dirigido pela coreógrafa Bia Lessa, o trabalho tem em um quarteto bem sintonizado – composto pelas atrizes Cláudia Abreu e Leandra Leal e os atores Luiz Henrique Nogueira e Rodrigo Pandolfo – a chave para expressar com a força necessária o texto fragmentado de Júlia Spadaccini, Jô Bilac e André Sant’anna, com direito a citações de Franz Kafka.
Com propostas totalmente distintas, as duas peças têm algo maior em comum: a inquietação que nos assola nesses tempos difíceis. Períodos duros que não são exatamente uma novidade, mas que parecem ter se agudizado ultimamente, em várias partes, em diversos sentidos, em muitos lugares. Ambos os trabalhos trazem uma atmosfera que, de fato, não é das mais otimistas, mas que possuem a virtude de cutucar a fundo feridas que frequentemente escamoteamos, fingimos não ver, acreditamos que irão desaparecer caso as ignoremos.
Diálogo Noturno com Um Homem Vil é um texto já aclamado e montado várias vezes pelo mundo, inclusive no Brasil com o próprio Celso Frateschi no papel de um escritor que é condenado à morte por seus textos. Desta vez, ele interpreta o carrasco, que chega de madrugada à casa de sua vítima para cumprir a tarefa de eliminá-la. Em uma sala repleta de livros, o homem que vai morrer, agora encarnado por Ailton Graça, espera seu destino, alternando momentos de coragem e medo, de revolta e resignação com o que está prestes a acontecer.
Gestos calculados, passos lentos, olhares inquiridores são trocados entre esses dois homens que jamais se viram antes, mas que parecem ler a alma um do outro. Em um estado totalitário, ter opiniões dissonantes passa a ser um crime. Mas essa equação não é tão simples. O assassino também é um oprimido, mais uma mera peça de uma engrenagem suja que precisa continuar a girar, a qualquer preço. Contra ela, os melhores argumentos não funcionam, as boas intenções não importam, o diálogo é impossível. Imperam o cinismo, a indiferença, o sadismo.
Já em Pi – Panorâmica Insana, o ritmo é mais frenético, com uma sucessão de situações que abordam questões candentes na atualidade e que nem sempre parecem estar relacionadas umas com as outras. No espetáculo, um grande vazio ocupado por milhares de peças de roupas, que os personagens vão vestindo e assumindo novas personalidades, é o terreno por onde os atores correm, se despem, se transformam e provocam. Seres urbanos, refugiados, prostitutas, sonhadores, rejeitados, esnobes, todos eles compartilham essa ciranda, sempre amarrada pelo vestuário.
Entre a farsa e o flerte com a pornografia, Pi nos joga na cara a complexidade de uma sociedade que parece sem rumo, com valores tênues, que se esforça em soterrar o diferente, chegando, assim, às raias do absurdo. O problema é que esse absurdo nos soa terrivelmente familiar. Atitudes, posturas, falas que reproduzimos com certa tranquilidade e quase nenhum remorso ganham outras conotações, revelando suas facetas mais cruéis. A violência, física e simbólica, perpassa todas as fases do espetáculo, sem que tenhamos muito tempo para respirar. Afogados em roupas e culpas.
As duas peças são difíceis de assistir sim. É preciso ter bastante disposição e alguma coragem. Elas nos trazem questionamentos sobre Deus, o sentido da vida, o valor da existência, a desumanidade reinante. Mesmo os meios-tons são desenhados com vivacidade e em estertores. Os olhares e as feições dos personagens, constantemente, dizem mais que as palavras e quando estas são enunciadas, isso não se dá gratuitamente. Corpo e mente se encontram em abominações que nos retiram a perspectiva de civilidade. Não, não são comédias fáceis. Não, não é para rir mesmo.