(Curadoria de Luís Araujo Pereira)
[1]
Os anjos de Sodoma
Eu vi os anjos de Sodoma escalando
um monte até o céu
E suas asas destruídas pelo fogo
abanavam o ar da tarde
Eu vi os anjos de Sodoma semeando
prodígios para a criação não
perder seu ritmo de harpas
Eu vi os anjos de Sodoma lambendo
as feridas dos que morreram sem
alarde, dos suplicantes, dos suicidas
e dos jovens mortos
Eu vi os anjos de Sodoma crescendo
com o fogo e de suas bocas saltavam
medusas cegas
Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e
violentos aniquilando os mercadores,
roubando o sono das virgens,
criando palavras turbulentas
Eu vi os anjos de Sodoma inventando
a loucura e o arrependimento de Deus
̻ ̻ ̻
[2]
A vida me carrega no ar
como um gigantesco abutre
A verdade dos deuses
carnais como nós & lânguidos
não provém do nada
mas do desejo trovejante do coração
partido pelo amor
em sua disparada pelo rosto de um
adolescente
com sua fúria delicada
cruzo avenidas insones & corroídas
de chuva
minha mão alcança minha dor
presente
& me preparo para um dia duro
amargo e pegajoso
a tarde desaba seu azul sobre
os telhados do mundo
você não veio ao nosso encontro & eu
morro um pouco & me encontro só
numa cidade de muros
você talvez não saiba do ritual
do amor como uma fonte
a água que corre não correrá
jamais a mesma até o poente
minha dor é um anjo ferido
de morte
você é um pequeno deus verde
& rigoroso
horários de morte cidades cemitérios
a morte é a ordem do dia
a noite vem raptar o que
sobra de um soluço
̻ ̻ ̻
[3]
Porno-samba para o Marquês de Sade
esta homenagem coincide com a deterioração do Gulag
sul-americano minado pela crise de corações & balangandãs
econômicos onde se mata de tédio o poeta & de fome o
camponês & sobre os pés femininos se calça a bota de
chumbo de várias cores gamadas com Hitleres de plantão em
cada esquina recoberta de saúvas & amores escancarados
como túmulos onde tuas coxas, Marquês, servem de amparo
delicado para o garoto que chupa teu pau enquanto uma
mulher ruiva te cavalga Assim, anotemos o nome da
vítima-orgasmo-blasfêmia antes que as araras entrem na
orgia com seus estimulantes bicos recurvos & um
estratagema de cipós afague os sóis da desolação
quotidiana em nível de Paraíso A noite é nossa Cidadão
Marquês, com esporas de gelatina pastéis de espermas &
vinhos raros onde saberemos localizar o tremor a sarabanda
de cometas o suspiro da carne.
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[4]
- A Coreia é na esquina
Assim não dá meu tesão
eu começo a sonhar com você todas as tardes
& você lá em Santos
comendo amendoim
vendo anjos nas cebolas do mercado
navios entram & saem do porto polidos
eu corto as veias & rego meu queijo-minas
você me ama eu sei & me envaideço
amoras jorram a beleza anarquista de suas
coxas molhadas
o peixe-espada pode lhe declarar amor
eu penso nestas ilhas perfumadas
mas o caminho de volta eu só conto
a este urubu em carne viva
que grasna na sacada.
̻ ̻ ̻
[5]
A propósito de Pasolini
quando você encontra um garoto
perto de um chafariz
& ele se curva para a água
tal qual em Caravaggio
sombra selvagem do crepúsculo
com o sol turquesa
nos cabelos ouriçados
é o momento doente
como um solfejo pagão
depois da orgia
é assim que crescem os deuses
na primavera e seu ardor melancólico
são os anos os povos os garotos videntes
que não broxaram sob as tenazes
dos cegos que perderam a Palavra
março/manhã, 87
Perfil
Roberto Piva nasceu no dia 25 de setembro de 1937 em São Paulo e morreu aos 72 anos, em 3 de julho de 2010, na mesma cidade. Muitas vezes associado à geração beat, ao surrealismo e ao homoerotismo, a sua poesia, no entanto, é mais complexa, pois pode ser também classificada como anárquica, delirante, transgressora, imaginativa etc.. Foi essencialmente poeta. A sua obra nesse gênero compreende os seguintes títulos: Odes a Fernando Pessoa (1961), Paranoia (1963), Piazzas (1964), Abra os olhos e diga ah! (1975), Coxas (1979), 20 Poemas com brócoli (1981), Quizumba (1983), Ciclones (1997), Antologia poética (1985), Estranhos sinais de Saturno (2008, constante em suas poesias reunidas). De 2005 a 2008, Alcir Pécora, professor de teoria literária da Unicamp, organizou a sua obra em três volumes, que foi publicada pela Editora Globo. Esse conjunto recebeu respectivamente as seguintes denominações: Um estrangeiro na legião, Mala na mão & asas pretas e Estranhos sinais de Saturno. Na apresentação do primeiro volume, fez estas considerações: “A leitura dos próprios textos permite justificar uma proposta de publicação em três volumes: um para o primeiro período, de viés beat, whitmaniano e pessoano; outro para o segundo, de traços psicodélicos e experimentais; e um terceiro, para um período mais recente, predominantemente místico e visionário. Convém notar, desde logo, contudo, que os elementos mais relevantes de um período permanecem em todos os outros, havendo aspectos de continuidade e coerência marcantes em todo o conjunto, como, por exemplo, o seu efeito de alucinação. Seja como for, a dominante poética em cada conjunto apresenta diferenças significativas. Em termos de composição dos versos, distinções podem ser igualmente sustentadas em relação aos três períodos: o verso mais longo do primeiro; os cruzamentos-limite de prosa e poesia, bem como os experimentos gráficos do segundo; os versos mais curtos e regulares do terceiro, entre outros distinguos a serem analisados nos posfácios dos volumes, distribuídos a críticos com grande familiaridade com a obra de Piva.” Assim, esses posfácios foram escritos por Claudio Willer (v. 1), Eliane Robert Moraes (v.2) e Davi Arrigucci Jr. (v. 3), os quais ampliam a compreensão da complexidade da tessitura poética de um dos mais importantes autores de nossa contemporaneidade e fornecem ao leitor vislumbres enriquecedores dessa complexidade.