Quem me conhece sabe que meu pai, Alexandre Neto, foi jogador profissional do Goiás Esporte Clube. Daí que o futebol é minha segunda língua – imaginem a quantidade de resenhas futebolísticas ouvidas ao longo da vida, as conversas dos amigos de time que frequentaram a nossa casa, toda uma rede de metáforas e metonímias futebolescas, xingamentos e gozações, descrições e análises, o assunto da hora do almoço, da fila de banco e do velório. E, sendo língua, futebol é também memória. A maioria das crianças cresce ouvindo contos de fadas, eu cresci ouvindo histórias de jogo, de jogadas, todo tipo de acontecimentos não contabilizados pela crônica esportiva. De tanto ouvir meu pai contar sobre o jogo de inauguração do Serra Dourada, de que ele participou pela seleção goiana contra a de Portugal, passei muito tempo achando que tinha assistido à partida, que aconteceu dois anos e oito meses antes de eu nascer.
Fui criada ouvindo que futebol só poderia ser arte, qualquer coisa diferente disso seria apenas um bando de gente correndo atrás de uma bola. E se futebol era arte, o brasileiro era sua expressão mais fina, era poesia – essa foi a leitura de Pasolini depois de ver a final do mundial do México em que o Brasil venceu a Itália por 4 a 1. Virou clichê: o futebol europeu ficou sendo prosaico e o nosso, e por extensão, o latino-americano, poético. Não vou descrever a minha decepção quando, em 1990, de posse de todo o conhecimento sobre futebol que uma menina de 13 anos poderia ter, vi uma seleção jogando sem verso nem rima. Mas a paixão se deflagrou junto à decepção, mesmo vendo o Brasil perder para a Argentina de Maradona, gostava do que via no outro time. Naquelas oitavas de final, a arte estava do outro lado, mas, pelo menos, estava em algum lugar.
Meu pai conta uma história que sempre achei merecer acabamento estético, talvez a forma do conto, mas vai aqui de crônica mesmo, que minha arte não está à altura de seu futebol. Além disso, trata-se de um episódio não registrado em vídeo, temos notícia apenas de que houve uma nota sobre o caso no jornal O Popular assinada pelo Jairo Rodrigues. A cada vez que pedi “pai, conta aquela de Manaus”, ele mudou um nome de jogador, esqueceu um passe que tinha descrito antes, acrescentou um drible. Então, para contar essa história, eu tenho que dar uma de Emília e fazer de conta – seguindo o conselho do Nelson Rodrigues (não concebo crônica de futebol sem citar esse torcedor do Fluminense), assumo que vou retocar os fatos, transfigurá-los e até dramatizá-los aqui.
Era no tempo do telex. No ano de 1973, o Goiás disputou pela primeira vez o Campeonato Brasileiro de Futebol. Passando à segunda fase, o time foi a Manaus no inverno quente de setembro para enfrentar o Nacional no antigo Estádio Vivaldo Lima, derrubado para a Copa de 2014. Parece que o jogo não foi nada fácil para o Goiás, pois o grupo adversário contava com bons jogadores emprestados do Atlético Mineiro, entre eles Toninho Cerezo.
No final do segundo tempo, em um contra-ataque, o atacante Campos acertou a trave do goleiro Joel, e Toninho tentou aproveitar o rebote. Para isso, entrou em uma dividida com o quarto zagueiro Alexandre Neto na tentativa do arremate. Gosto de lembrar que todo quarto zagueiro já foi chamado de cavalo um dia, mas dessa vez quem levou o coice foi meu pai. Ele entrou na bola com toda sua fama, o outro girou, os dois acabaram no chão. Alexandre Neto permaneceu mais tempo deitado, segurando o queixo aberto. Constatada a gravidade do ferimento, foi substituído e levado a um hospital. O jogo terminou logo depois. Um jornal local transmitiu, por meio de telegrama, aos principais órgãos de comunicação interessados no Brasileirão, o resultado final: Nacional 1, Goiás 0, Alexandre Neto baleado.
A rádio Difusora do Rio de Janeiro repassou e oficializou a informação: Alexandre Neto, atleta do Goiás Esporte Clube, baleado e morto. Enquanto a flecha fúnebre da notícia percorria seus descaminhos, os jogadores do time goiano também estavam em trânsito de volta para casa. Um tio, acompanhando tudo com os poucos instrumentos que existiam na época (um rádio e um telefone fixo), resolveu ligar no aeroporto de Brasília, última conexão prevista para o time derrotado. Sim, um esquife havia embarcado em Manaus, feito conexão em Belém e seu destino final era Goiânia. Só não sabiam dizer o nome do defunto. Familiares, amigos e torcedores acorreram à sede do time, os detalhes eram desencontrados, não havia gravação do jogo para entendimento do lance que resultara na perda da vida de jogador tão jovem e promissor. A única certeza era de que Alexandre Neto havia sido baleado, morto e seu ataúde encaminhava-o para repouso definitivo em terra natal. Deixaria uma bela noiva de olhos azuis e muitas outras saudades.
A “língua geral” do futebol, já observou Wisnik, acontece numa zona limítrofe entre tempos e culturas. Daquela vez, a língua geral não funcionou, não havia WhatsApp e o sentido do baleado manauara machucou muitos corações goianos. Quando Alexandre Neto entrou em casa andando sobre as próprias pernas com um curativo no queixo, além de produzir susto e graça, abria silenciosamente um campo verde e infinito para o jogo da minha imaginação. A crônica do baleado é o meu porquinho-da-índia.