Em 11 de outubro de 1928, vimos Orlando pela última vez. Ela então contava 36 anos de idade, mas já havia vivido mais de três séculos de uma jornada singular. Tomando essas estranhas contas em consideração, hoje ela deve ter por volta de 45 anos e perambular por aí, com seus eternos dilemas, seus fluxos de consciência em ritmo alucinado e sua contínua tentativa de encontrar a própria identidade.
Não, não há contradição no parágrafo acima. Orlando é uma mulher, ainda que tenha sido um homem que conquistou a simpatia da rainha Elizabeth I no século 16, tenha sofrido de amor por uma princesa russa e até se casara com uma misteriosa dançarina. Depois que passou a ser do sexo feminino, em um sono de sete dias, deixou de ser embaixador de Sua Majestade na Turquia e virou cigana, ligou-se a um aventureiro do Cabo Horn e teve até um filho em um parto inesperado.
Sim, é tudo muito convulso. Virginia Woolf, criadora desta criatura eclética, preferia denominar o enredo de “uma fantasia”, realizada em homenagem à sua amiga − que também era amante eventual e uma paixão de toda a vida − Vita Sackville-West. Encontro que a literatura proporcionou a ambas, ainda que Vita, mais vibrante e libertária em suas aventuras bissexuais, não pudesse rivalizar como escritora com aquela que marcou a prosa inglesa no século 20.
De alguma forma, porém, Vita, pelas mãos de Virginia e de dezenas de cartas trocadas entre as duas, ingressou na história das letras. Afinal, Orlando, sua “biografia ficcional”, como dizia a autora de Mrs Dolloway, tornou-se um clássico por sua ousadia e por revelar uma Virginia Woolf mais leve, engraçada e menos preocupada com formalismos. Escrito entre outubro de 1927 e março de 1928, justamente em uma crise de inspiração da autora, há neste trabalho uma liberdade unida a um talento narrativo reconhecido.
Parodiando diversas sociedades e cortes inglesas, Virginia Woolf encontra na amiga, pertencente a uma longa linhagem de sangue nobre com intimidade rara junto a cabeças coroadas, o objeto perfeito para esse itinerário cheio de figuras ilustres. O caótico reinado de Elizabeth I, sucedido por outros, como o insípido rei Jaime II e a conservadora Rainha Vitória, compõem um mosaico de mudanças profundas no Reino Unido, com guerras e alterações de padrões de conduta.
Esses quatro séculos passam pelo enredo como Orlando passa por uma vida que o vai transformando, mental e fisicamente. Ele conhece Shakespeare sem saber que o homem calvo com cara de poucos amigos é o grande bardo. Já após sua mudança de sexo, ela convive com nomes como Alexander Pope, Jonathan Swift e Addison, identificando suas idiossincrasias e fazendo comentários que podem ser de admiração ou totalmente jocosos. Desta forma, Virginia Woolf joga para escanteio recatos e convenções e tece um texto saboroso, sempre dialogando com a realidade histórica e presente.
Knole, uma grande propriedade com 365 cômodos e 52 escadarias − o número de dias e de semanas do ano, enfatizando a relação da obra com o tempo −, norteia um enredo cronológico, mas que desafia o leitor a acompanhá-lo. Esta, aliás, é uma característica do estilo de uma escritora que se notabilizou por intensos elementos psicológicos em seus trabalhos. Orlando não foge desta tradição, ainda que a contemple por outras vias. Sua paixão insegura pela literatura, seus momentos de depressão após grandes euforias, seu perfil frágil quanto a desilusões também trazem o desenho da personalidade da própria Virginia Woolf, que acabou tirando a própria vida durante uma crise nervosa.
Orlando, porém, não morre e, resistindo aos perigos representados pelo tempo e pelas pessoas, é uma espécie de redenção de sua criadora. O livro tem uma atualidade que chega a ser desconcertante, uma vez que enfatiza o quanto avançamos e o quanto retrocedemos ao mesmo tempo. As questões que o romance levanta, como as ligadas a identidade de gênero, transexualismo, transformismo, que ganharam tanto terreno nos últimos anos e que vêm sendo tão combatidas por parcelas conservadoras da sociedade, foram tratadas com vanguardismo e sem escândalos por Virginia Woolf nove décadas atrás.
Cabe, então, a pergunta, enunciada no título da peça de Edward Albee: quem tem medo de Virginia Woolf? E se Orlando se revelasse hoje, com seus 400 anos de vida e seu desafiador jeito de ser, o que faríamos? Vai aqui uma sugestão: não tema ler Virginia Woolf. Já é um excelente começo para encarar certos temas com a cabeça menos nublada por formatos nascidos sabe-se Deus em que época.