Era um fim de tarde, se isso quer dizer alguma coisa.
Da rua vinha o sopro de um vento rude que se infiltrava pelas frestas da porta. Vento que materializava a estação sob a forma de agulhas perfurantes. A sua preocupação, porém, naquele momento era outra. O inverno era só mais uma estação. Ele estava ali para conversar com a mulher ao seu lado ̶ e não para lamentar a falta de agasalhos adequados.
Nesse mesmo recinto onde estava agora, muitos anos depois, sentado à mesma mesa, ele tentava achar o sentido para aquele evento que vivera ali e, mais ainda, o que acontecera antes do episódio trágico consumar-se. Ele se lembra com precisão dos olhos selvagens da mulher, que eram da cor do âmbar, e fora disso não se lembrava de muita coisa. Havia um brilho de ressentimento neles, aqueles olhos que tantas vezes admirara com enlevo. Ambos estavam numa cantina da rue Vaugirard. Era um inverno frio pra caramba. Por isso, o vento cortante insinuava-se quando um casal abria a porta ̶ um vento como se, na sua passagem, soprasse uma respiração de morte.
Os olhos da mulher lacrimejavam, deixando escorrer um fio diáfano pelo seu rosto, que só não caía direto sobre a toalha porque, antes disso, ela levava a mão à face e interrompia o seu curso. Teve a impressão de que um tremor a transfigurava. Qual era mesmo o nome dessa mulher que, em Paris, chorava e, ao mesmo tempo, afligia-se esfregando as mãos, como se as suas lágrimas fossem compostas de um sal mais amargo? Se ele lembra bem, numa lucidez repentina, que o ajudou a encontrar o nome da mulher, pois uma palavra que evocava ameixas ocorreu em sua mente, sem mais nem menos.
“Mirabelle” ̶ eis o nome da mulher, lembrou-se por fim, para depois esquecê-lo em seguida.
Olhos da cor do âmbar, ressentidos, que não sabiam fingir, o vento que não deixava de ser lancinante, insinuando-se, dois corpos à mercê de acontecimentos que não podiam antever ̶ eis o resumo do que ocorria ali, naquela cantina de poucos fregueses, num fim de tarde parisiense na rue Vaugirard.
Essa mulher disse apenas três frases, todas elas quase indistintas, a primeira para ele saber que ambos estavam em maus lençóis. Na sua tentativa de explicação, atropelando palavras e soluçando, ela parecia chorar por duas pessoas: por ela mesma e, sem dúvida, por ele.
Foi assim que o homem compreendeu o iminente perigo a que ambos estavam expostos.
Se ele recorda bem, depois de tanto tempo que guarda esses episódios como uma dor no peito que não se apazigua e também como cenas que fogem de sua memória, a primeira frase da mulher foi exclamada como balbucio, as palavras entrecortadas:
“Estamos ferrados, muito ferrados!”
Com isso, ele conseguiu deduzir rapidamente que o plano fora por água abaixo. Antes de recobrar o espanto que tivera com a informação ̶ isso ele se lembra bem ̶ a cantina, de súbito, foi invadida por três mafiosos com os seus ternos gastos, empunhando pistolas lustrosas, e, assim que discerniram o alvo, atiraram com gosto, como se acertassem contas que só são pagas com sangue, os velhos gângsteres bons de guerra que sabiam meter bala e sorriam quando atiravam, mesmo que as suas caras fossem medonhas.
No caos de pólvora e gritos que sobreveio em seguida, ele ainda conseguiu empurrar a mulher para o lado e virar a mesa, na desesperada tentativa de se protegerem.
No confronto, ele se lembra também da segunda frase, dita entre balbucios que o deixaram revoltado por ter a vida ameaçada em virtude de um negócio de pouca monta, que envolvia gângsteres nervosos que não sabiam perder.
“O traidor é o espanhol, o cara esquisito, o que fuma charutos…”
Sob o estopim dos tiros, mesmo atingido, ainda conseguiu sacar a sua automática e mandar dois bandidos para o chão, enquanto, debalde, o terceiro procurava evadir-se, não sem antes de ser premiado com dois balaços que se alojaram em suas costas, derrubando-o sobre uma mesa onde estavam agachados clientes em pânico. Ele quase teve certeza de ter ouvido o último suspiro do facínora, mas isso foi só uma impressão confusa por causa do pandemônio.
Ele ainda viu os olhos de âmbar faiscarem antes de seu brilho apagar para sempre. Pouco antes desse ato extremo, ela ainda tentou dizer a terceira frase, que ele procura lembrar-se todos os dias, inutilmente, sons de sílabas misturados com respiração ofegante, a palidez mortal que a levava deste mundo.
E tudo isso foi o fim, a não ser que ele queira acrescentar detalhes da cantina: a prateleira de bebidas, o balcão de jacarandá, o garçom displicente, os quadros com imagens do Sena, as janelas ovais, a cortina que separava a entrada dos banheiros… Disso tudo, porém, ele tinha certeza, uma das poucas que lhe restara daquele encontro sangrento, como uma sombra que passa levemente dentro de sua cabeça, roçando devagarinho algumas áreas de seu cérebro, como se a verdade estivesse dentro e não fora ̶ e ela, essa verdade que teima em apreender, fosse um traço, apenas um traço, que percorre lentamente um território remoto de sua memória.