[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Um rio. Recife
Nada se sabe do que me resolve
as águas que disfarço das margens
para não perturbar simetrias,
casinholas,
pequenos barcos falecidos na lama
(principalmente um
̶ verde ̶
meio adernado
perdida sua alma de barco:
os ratos não precisaram abandoná-lo,
morreu atolado como um trator,
morreu sem a salvação dos mistérios das águas).
Vou comportado em destinos cartográficos,
previsto em duas marés alternadas
uma régua fluida que mede o tempo:
mas vejo.
Sei coisas que não direi (como um pomar de braços
que poderia galgar até mulheres nuas).
Sei coisas rudes e miseráveis
resumidas num caranguejo dentro de uma lata
ou gritantes como o corpo que é navio
de ratos, de pequenos insetos.
Não direi.
Mas sei.
Custa caro me devorar a mim mesmo
e ser sempre passado.
Minha permanência é uma proposição insolúvel
mas ao mesmo tempo, cinturão do mundo,
conheço todos os ossos e todas as dores,
incorporo todas as pontes:
esqueço mas não esqueço.
Foi a partir de minhas águas
que descobriram: a memória
é algo destinado à diluição ou à revolta.
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[2]
À espera
À noite, ao mar da luz de Aldebarã
servimos sobre a areia nossas almas
cansadas, silenciosas, a um deus
que delas não fez uso nem ouviu
nosso canto final.
Um horizonte de algas nos cercava
e sentíamos nossos limites como os dedos
extremados, últimas folhas na invernia.
Um luar, como esgotado, nos ouvia
a respirar, somente, o ar, as nuvens.
Inumeráveis corpos em fileiras,
à beira do mar estávamos.
A barca não chegou, que nos levasse,
a luz não rebentou, que nos queimasse,
ninguém soube ninguém de Aldebarã
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[3]
Água alheia I
“O silêncio natural das árvores”,
sim,
mas não disseram que há telefonias
de folha a folha, tratando talvez
do tempo, dos gaviões ou do sol da manhã.
O “teto tranquilo, onde andam pombas”,
sim,
mas nem sempre tranquilo nem cioso
de suas brancas almas de velas,
suas almas que ouvíamos ontem.
“Complacências do peignoir e um café tardio”,
sim,
mas não se via a curva, apenas subentendida,
do seio destinado a alucinar adolescentes
e que a vermes se condenava, como simples maçã.
E a trompa de Rolando, sim, que também já ouvi
e lamentei nos equívocos que obrigam a entender
(embora muito tarde)
que o que foi dito, como sempre, pode apenas
o que acode às palavras: ̶ metade.
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[4]
Do glossário: árvores
Relativas à palavra “chuva”
e à palavra “sombra”.
Também a frutos e raízes.
Contêm pássaros.
Neles, elas cantam.
De sua fala própria
se diz que farfalham.
Aglomeram-se em parques,
jardins e bosques
e florestas (q. v.)
Atendem
(não atendem)
por nomes diversos.
Às vezes solitárias,
mostram mistério maior.
Comunicam-se entre si
por meios invisíveis aos homens.
São todas uma só.
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[5]
In tabula
Havia uma janela no seu peito
que dera fuga à sua vida.
Não era janela gênero Magritte
nem era ele o “dorminhoco do vale”:
estava lá, branco/verde como o Cristo Morto de
Mantegna.
Estendido na mesa do hospital,
ninguém chegava perto
como se um campo magnético impedisse
que alguém se avizinhasse:
em torno dele o silêncio e a deserção
cresciam expandindo a clareira
até hoje que lembro iluminada.
Um seu amigo chorou, de longe.
Fez uma frase assintática
“E meu amigo que ele era em mim tanto”
ou qualquer coisa parecida.
Enfermeiras veteranas desciam dos andares
para ver: viam de longe
olhando por cima dos ombros das outras
falando baixo.
Não penetravam o espaço mágico
do homem branco e verde com a janela no peito.
Em alguma parte da cena eu olhava também
de minha janela.
Perfil
Jorge Eduardo Figueiredo de Oliveira Wanderley nasceu no Recife (PE), no dia 21 de janeiro de 1938, e morreu na mesma cidade, em 12 de dezembro de 1999. Formado em Medicina, com especialidade em Neurocirurgia, abandonou a carreira em 1981 para se dedicar integralmente à literatura. Em 1976, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde fez mestrado e doutorado em Letras na PUC (RJ). Em seguida, passou a dar aulas na UERJ. Tornou-se exímio tradutor, o que lhe rendeu um Prêmio Jabuti e “ofuscou a sua produção poética pessoal”. Em quatro décadas, escreveu os seguintes livros de poemas: Gesta e outros poemas (1960), Adiamentos (1974), A casa navega (1975), Coração à parte (1979), Mesa/musa (1980), A foto fatal (1986), Anjo novo (1987), Homenagem: Dez sonetos (1992), Manias de agora (1995), O agente infiltrado (1999). Escreveu ainda Arquivo/ensaio (1993), que reúne artigos de critica literária. Como tradutor, organizou antologias e divulgou poetas pouco conhecidos do público. Cemitério marinho, de Paul Valéry (1974), Sonetos, de Shakespeare (1991), Antologia da nova poesia norte-americana (1992), 22 ingleses modernos: Uma antologia (1993), Os 25 melhores poemas de Charles Bukowski (2003), Do jeito delas, vozes femininas de língua inglesa (2008), Inferno, de Dante Alighieri (2004), estão entre os livros traduzidos por ele. Além desses livros, traduziu ainda poemas de Sylvia Plath, Marianne Moore, Elizabeth Bishop, Anne Sexton, Richard Wilbur, Jorge Luis Borges, Lawrence Durrel, entre outros. Em prefácio a Jorge Wanderley: Antologia Poética (2001), organizada por Márcia Wanderley, o professor e crítico João Alexandre Barbosa, comentando os elementos mais marcantes de sua obra poética, escreve que o autor tem “uma grande facilidade para o uso da linguagem, para as normas fixas e livres da poesia, aliada a uma, por assim dizer, confiança no lirismo de cunho pessoal a que não falta, é bem de ver, o traço moderno, ou mesmo modernista, da ironia e do coloquial”. Nessa mesma antologia, em texto para orelha, Sebastião Uchoa Leite afirma que “quem atravessa a sua obra poética, sai com a impressão, não de uma obra numa evolução contínua e direta, mas em ziguezague, parecendo ir numa direção e voltando-se para uma outra”.