Guadalupe Nettel, autora do romance O corpo em que nasci (2011), já foi rotulada com a tag da “geração inexistente”, que possui qualidade técnica, mas não tem muito a dizer a não ser a si mesma, pois não demonstra a intenção de se conectar à realidade circundante. Eu sempre me pergunto se é possível dizer ou escrever qualquer coisa sem essa conexão com o real. Essa pergunta está inscrita de modo filigranático nos meus óculos de leitura. Tento sempre ser muito discreta com essa preocupação, afinal a mímesis está condenada desde Platão.
Lendo a autoficção da autora mexicana com interesse por entender o modus operandi desse gênero tão em voga (escrita de si, design de si etc.), encontrei em suas memórias ficcionalizadas algo instigante: a história de uma vizinha chilena que a personagem-narradora-autora teve na infância, vivida durante os anos 70. Aparentemente tinham a mesma idade, moravam no mesmo condomínio (antiga vila olímpica dos jogos que aconteceram no México em 1968), mas nunca brincaram juntas. A relação entre elas consistia em um silencioso observarem-se simultaneamente, sem indiferença, com empatia, pelas janelas de seus quartos que se defrontavam. Eram vencidas apenas pelo cansaço e pelo sono.
Guadalupe relata que Ximena a fazia sentir-se, a despeito da ausência dos pais, apesar da absoluta incerteza do futuro, acompanhada na solidão. Ressalta que sabia pouco de Ximena, mas o que registrou é o que torna tudo interessante. Sabia que Ximena tinha perdido o pai para os homens de Pinochet. E imaginava que Ximena pensava com nostalgia nos tempos de vida alegre em família. Essa amizade durou pouco, durou até a noite em que Guadalupe viu da janela Ximena atear fogo sobre o próprio corpo, morrendo logo em seguida. Os familiares explicaram o ato com um diagnóstico de esquizofrenia – “uma enfermidade que servia para englobar todos os transtornos inclassificáveis”, descreve a própria autora.
Lília Momplé, autora moçambicana, também escreveu uma história sobre vizinhos. Uma história mais sórdida, é verdade. Neighbours (1996), inspirado em fatos reais, relata o que se passa em Maputo, com três famílias moradoras da mesma rua, a partir das 19 horas de um dia de maio de 1985 até às 8h da manhã do dia seguinte. Em uma das casas, um jovem casal com uma filha de dois anos vive a rotina sofrida da baixa renda; em outro apartamento, uma mãe de jovens mulheres aguarda angustiada a volta do marido infiel para a comemoração de uma data maometana; na terceira residência, um matador de aluguel reúne homens do mesmo tipo para assassinar a primeira família a fim de provocar um fato político que justificasse a implementação do apartheid em Moçambique.
Tudo acontece conforme o planejado e mais: a mãe maometana, ao ouvir os tiros na casa do jovem casal, sai à varanda para confirmar o que estava ouvindo e acaba sendo alvejada mortalmente; além disso, o matador que organizou toda a cilada sucumbiu em confronto com a polícia. Eram vizinhos, não se conheciam – não se pode sequer falar em empatia, talvez indiferença. Mas assim como na relação silenciosa entre Guadalupe e Ximena, sabiam o que era necessário: sabiam que estavam em um momento delicado da vida política em seu país. Lília Momplé explora isso ao escolher o título de seu livro: “Um título que pudesse exprimir a sensação de constante asfixia e extrema vulnerabilidade perante forças tão poderosas e hostis e simultaneamente tão próximas que a sua sanha mortífera se podia abater sobre nós, da forma mais imprevisível e brutal”.
Da Cidade do México a Maputo e desta a uma cidade invisível: Olívia é a primeira cidade distópica do livro de Italo Calvino. A partir da segunda metade de As cidades invisíveis (1972), suas “personagens” se tornam sutilmente mais hostis, algumas se tornam perversas. Olívia é uma cidade discursivamente hostil porque sua prosperidade obriga ao elogio, “mas, a partir desse discurso, é fácil compreender que Olívia é envolta por uma nuvem de fuligem e gordura que gruda na parede das casas; que na aglomeração das ruas, os guinchos manobram comprimindo os pedestres contra os muros”. Para o narrador Marco Polo, se há pessoas que cantarolam alegremente pelas noites iluminadas do centro da cidade, isso significa que nos subúrbios há homens e mulheres onde, à margem, desembarcam ao fim de um dia de trabalho como sonâmbulos. Olívia é a Maputo de Momplé, é a Cidade do México de Nettel. O jogo entre empatia e indiferença se define então como fio condutor dessas memórias de leitura que evocam vizinhos e sonâmbulos.
Hermann Broch escreveu uma trilogia chamada Sonâmbulos durante o período de ascensão nazista. Em 1950, escreveu ainda Os inocentes, em que elaborou um enredo bastante romanesco, cheio de intrigas, paixões enciumadas, traições e envenenamentos. Nada no conjunto da narrativa parece ser influenciado ou mesmo refratar os anos de discurso de ódio, a prática higienista, o sofrimento da segregação, o luto pelos “desaparecidos”, o medo do embarque iminente para a morte, o horror pela linha de produção genocida. E, no entanto, o título diz ironicamente o contrário: não há inocentes. Porque “a indiferença política”, diz Herman Broch, “é muito semelhante à indiferença ética e também, nas suas últimas consequências, à perversidade ética”. Ainda bem que a literatura só fala de literatura. Se a mímesis não estivesse condenada há tanto tempo, eu suspeitaria que há algo de inocente no ar.
TARSILLA
(Arthur Boz)
Tarsilla, se não for discreta, cora!
Nem fala mais em mímesis, consente:
“Literatura é intertexto”, mente.
E assim, Momplé, Calvino ela devora!
Também lê Broch, Nettel. “Mundo? Lá fora!”
Nas calmas imanências, vai contente;
e assim, tão confortável, engana a gente
com chispas de sarcasmo a toda hora!
“N’O corpo em que nasci’ tem Pinochet;
Em ‘Neighbours’ de Momplé tem apertheid;
Na Olívia de Calvino, iniquidade;
No romanção de Broch, quando se lê,
tem ironia logo na fachada:
‘Os inocentes’. Hum… Pois é. Nonada!”