[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Descoberta
Só depois percebemos
o mais azul do azul,
olhando, ao fim da tarde,
as cinzas do céu extinto.
Só depois é que amamos
a quem tanto amávamos;
e o braço se estende, e a mão
aperta dedos de ar.
Só depois aprendemos
a trilhar o labirinto;
mas como acordar os passos
nos pés há muito dormidos?
Só depois é que sabemos
lidar com o que lidávamos.
E meditando sobre esta
inútil descoberta
enquanto, lentamente,
da cumeeira carcomida
desce uma poeira fina
e nos sufoca.
• • •
[2]
Carlos Anísio Melhor
Sobre o balcão mais sórdido da rua
põe o poeta a pastar sua Quimera,
que nos fascina e logo se insinua
em cada um ̶ senhora, bela e fera.
É noite ainda, sim, mas outra, funda,
que essa magia urina em nossas veias:
grinalda misteriosa nos circunda
de perfumes, sussurros, suaves teias
de amavio… E bebemos, com o poeta,
amores idos já, tornados alma,
auréolas de silêncio, água quieta
embalando Memória, Tempo e Calma.
Bebemos com o poeta, que suscita
luas agônicas ̶ e as dilui
em nossos copos. Negro vento agita
os escombros da noite: quem possui
a chave do Sossego? o segredo
das mãos pacificadas? a poção
do hálito feliz? quem tem o ledo
condão de aceitar seu coração?
Ninguém, ninguém! Só resta o viajar
para Profundo, e Alto, e Mais Além!
A um gesto do poeta, ergue-se o bar
e a vertigem da viagem rompe, vem
nos habitar. E eis que só ela é.
E é o Sonho, o Sonho! Já nos integramos
em seu ser. Uma estrela vem até
nossos olhos, e os beija. E sonhamos.
Este é o nosso País, a nossa Era
̶ muito acima da hora magra e agra ̶
que, soltando a pastar sua Quimera,
o anjo Anysius ilumina e sagra!
• • •
[3]
Enquanto
Um dia recordarei
que aqui estive, assim, à brisa
de janeiro, folhas verdes
acenando sobre o muro,
céu azul, silêncio,
como
lembro a tarde em que cruzaste
o leito seco do rio,
as tranças ruivas e longas,
os seios ainda dormindo
na blusa
e além: na infância.
Um dia recordarei
esta hora, estas palavras
que se escrevem leves como
a brisa, e com ela passam
para o jardim em que lembra
a minha alma
enquanto
tarda o tempo de esquecer.
• • •
[4]
Canção da alma estagnada
Faz tempo que não escrevo.
Mas como escrever, se nada
ouço em mim, se nem um sopro
se move na alma estagnada?
Tudo cessou. Uma ausência
é só o que sinto onde havia
aquela que refulgia
em amplas marés de sonhos
e, às vezes, como o luar,
derramava-se ̶ infinita
de caminhos, como o ar.
Aquela que foi assim
e agora é só um vazio,
pois que em almas estagnadas
nada é ̶ como num mundo
de onde partiram as fadas
• • •
[5]
Soneto do sono
A tarde é tão serena que parece
vir do hálito que sobe do teu sono.
Vejo-te ir nas nuvens do abandono,
comovido de calma. A tarde desce
ao longe, sobre o mar. Mas lenta e leve,
como a exala o sonho desse sono.
E tudo, enfim, é o sopro do abandono
e o seu sussurrar na mão que escreve.
Dormes como num voo. Como se fosse
quando o tempo era jovem. E então me sinto
pleno de mar e luz e céu ̶ e sou
soberbo e claro por estar absorto
no abandono desse pó de estrelas
que se juntou para inventar teu corpo.
Perfil
Rui Alberto de Assis Espinheira Filho nasceu em 12 de dezembro de 1942, em Salvador (BA), onde reside. Graduou-se em Jornalismo, tornou-se mestre em Ciências Sociais e doutor em Letras pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em 1999, foi distinguido com o título de doutor honoris causa pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. É professor do Instituto de Letras da UFBA e membro da Academia de Letras da Bahia e da Academia de Letras de Jequié. Além de poeta, é também jornalista, romancista, contista, ensaísta e cronista. Publicou os seguintes livros de poemas: Heléboro (1974), Julgado do Vento (1979), As Sombras Luminosas (1981, Prêmio Nacional de Poesia Cruz e Sousa), Morte Secreta e Poesia Anterior (1984), A Guerra do Gato (1987, infantil), A Canção de Beatriz e Outros Poemas (1990), Antologia Breve (1995), Antologia Poética (1996), Memória da Chuva (1996, Prêmio Ribeiro Couto da UBE de 1998), Poesia Reunida e Inéditos (1998), Livro de Sonetos (2000, 2.ed., revista, ampliada e ilustrada), A Cidade e os Sonhos/Livro de Sonetos (2003), Elegia de Agosto e Outros Poemas (2005, Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras e Prêmio Jabuti). Como prosador e ensaísta, publicou mais de dez títulos. Pela importância de sua produção literária, os seus poemas e contos integram diversas antologias, no Brasil e no exterior (Portugal, França, Itália, Espanha e Estados Unidos). Em texto para o livro Poesia Reunida e Inéditos, Alexei Bueno considera que a obra de Ruy Espinheira Filho, quando “lida num fio, mostra uma perfeita combinação de variedade e unidade, é um ‘poeta da memória’”. E continua em outro trecho: “E poeta da memória no mais legítimo veio da língua, nessa sensação de exílio do que se passou ̶ pois como todo o tempo, como toda a vida, é exílio ̶ que reproduz no agora temporal aquele que geograficamente viveram alguns de nossos maiores, de Camões a Camilo Pessanha, ou biograficamente o nosso imenso Pessoa, e todos a um só tempo nesse exílio obrigatório que é a solidão, outro tema presente, em suas várias origens, na obra de Ruy Espinheira”.