Eu leio romances policiais de enfiada, um atrás do outro, como se houvesse um visgo no gênero. Não só os considero um gênero complexo ̶ se penso evidentemente no cânone que o robustece, formado por muitos autores de várias partes do mundo ̶ , mas os aprecio também como uma classe de narrativa que oferece ao leitor a experiência estética e psicológica de participar do enigma (ou do mistério ou da conspiração ou do crime ou do suspense) enquanto se diverte com o vaivém, muitas vezes infrutífero, muitas vezes engenhoso ou inverossímil, de uma investigação que é levada a cabo por um detetive cuja busca da verdade é cheia de reviravoltas. Digamos que esta seja, entre outras, uma de suas características mais atraentes: caçar o criminoso.
Quando devo fazer uma viagem de ônibus ou de avião, levo um ou dois títulos. O que seria desses viajantes indefesos e desgarrados se eles não carregassem na bagagem um Chandler? E, em outro purgatório ̶ o quarto de um hotel impessoal ̶ , quando se é tímido e, por isso mesmo, vítima de um isolamento voluntário? Esse provável e indefinível leitor talvez guarde um Mickey Spillane básico e, graças a essa precaução, a sua noite não se tornará um naufrágio entre quatro paredes.
Como outros, esse gênero oferece ao leitor a possibilidade de ser hipnotizado quando a história rouba a atenção imediata. Não importa o lugar onde esteja, eu o esqueço num instante e transfiro-me de corpo e espírito para as páginas do romance. Esse fenômeno ocorre quando temos diante dos olhos uma história bem escrita e contada ̶ e, como aditivos, perseguição, tiros, sangue ou uma mulher indefesa que, depois de muita dissimulação, descobrir-se-á mais tarde que era uma vadia dissimulada, a serviço de uma quadrilha de criminosos.
Tais expedientes permitem um transe de leitura ̶ ou o surgimento de mecanismos de projeção e identificação, como os psicólogos gostavam de chamá-los no passado. Não importa o conceito, ele nos faz esquecer por algumas horas o nosso mau humor e as nossas preocupações, aumentando o nosso interesse pela fantasia que procura encontrar no mundo real um simulacro desse outro mundo que vivemos em forma de frases e parágrafos, materializados por uma imaginação inquieta.
Não é preciso dizê-lo: o romance policial sempre teve os seus detratores. Nós, os seus fiéis leitores, porém, não nos preocupamos com qualquer tipo de crítica, que nunca camufla a defesa da chamada “alta literatura”. Um bom leitor de romances policiais nunca vai anular Proust, Joyce, Faulkner, Woolf, Machado…
Parece que essa implicância tem origem na formação literária insatisfatória. Ainda mais porque não existe gênero melhor do que outro. Existem romances bem e mal escritos. No caso do romance policial, a literatura gótica e Allan Poe, o codificador do gênero, são tão bons quanto Flaubert.
Quando releio A Noiva Estava de Preto, de C. Woolrich, O Sono Eterno, de R. Chandler, Milionários Demais, de R. Stout, Dinheiro Sujo, de R. Macdonald, Ponche de Rum, de E. Leonard, entre tantos outros, entendo por que Borges era fascinado pelo gênero e o praticou com Bioy Casares, o seu grande parceiro intelectual.
Pensando agora num autor que elevou o gênero àquela complexidade a que me referi antes, a biografia que Diane Johnson escreveu sobre Dashiell Hammett esmiúça antes um homem que vivia nos limites de suas forças do que um escritor folgado e boêmio, que reinventou o romance policial no mundo anglo-saxão.
Como muitos de Hollywood do período, por causa de sua militância em muitas entidades de intelectuais que defendiam direitos, e de muitas entrevistas nas quais externava a sua opinião sobre o momento político que vivia, Hammett foi perseguido pelo macarthismo, condenado a seis meses de prisão por desacato ao tribunal, por se recusar a responder a perguntas sobre atividades comunistas. Como os infortúnios o rondavam, abandonou a família, esbanjou a sua fortuna financeira, tornou-se alcoólatra, sufocou-se na perda da sua identidade literária quando não conseguia mais escrever. Na ânsia de ter uma vida plena, Hammett foi só mais um caso de talento desperdiçado. Mas a sua dignidade era inegociável: quando os Estados Unidos entraram na guerra, alistou-se em 1942 no Exército, sendo designado para uma unidade de Nova Jersey, onde realizou tarefas leves.
A despeito de tudo, Lillian Hellman protegeu-o, adulou-o, tornou a sua vida menos estéril e mais suportável, a ponto de comprar uma fazenda para que ambos tivessem uma vida compartilhada. Por causa de todas as suas idiossincrasias, não escreveu muitos livros, tendo mesmo passado 20 anos sem compor um único parágrafo. Considerando que tinha publicado romances esplêndidos e, mais ainda, todo o seu potencial como escritor, essa esterilidade representava um fracasso com o qual conviveria até o fim dos seus dias.
Para quem leu os seus contos e romances, não é difícil concordar que Falcão Maltês ocupa um lugar destacado em sua literatura, uma pequena obra-prima. Não só por ter sido sucesso de público, mais ainda quando foi adaptado por John Huston, o que só prova a sua imensa força narrativa que permanece intacta até hoje. Simplificando, todos os livros que Dashiell Hammett escreveu foram suficientes para transformar o gênero, nos anos 40, nos Estados Unidos, numa modalidade que transita entre o mercado de livros de entretenimento e a grande arte literária.
Para o escritor, basta um livro ̶ principalmente se ele conseguir criar um mundo mais interessante do que o nosso, no qual haja justiça, felicidade, um pouco de romantismo, um balcão de carvalho, uma mesa de sinuca e, não menos fundamental, uma garrafa de uísque, dois copos e uma mulher atraente.
E, do outro lado, talvez num assento de ônibus, segurando um volume, com toda atenção voltada à história, haja um leitor atento, quase em transe.
Luis Araujo, sempre nos acalentando com um bom e significatvo texto.