Não sou escritora, mas se tivesse que escrever um romance hoje, contaria a história de uma trabalhadora mulher mãe que naufragou. Afogou-se num mar pós-tsunami – aquela onda imensa permanentemente revolta de cacos de vidro, rascante de pedaços de todas as coisas transformados em estiletes, lascas-lanças de objetos arrancados com violência à vida aparentemente organizada. O movimento tectônico em si, a candidatura grávida de ódio bem-sucedida, não seria referenciada objetivamente. O romance começaria no momento em que a salvação, uma pequena jangada improvisada, se despedaça sob o peso de seu corpo exausto. Na falta da jangada, o corpo contaria, com o que lhe restasse de força, a história de seu não.
Não era essa a lição do fort-da abstraída por Freud ao observar seu neto? No jogo do carretel, a criança faz desaparecer (fort=foi embora) e faz reaparecer (da=aqui) o objeto, simulando a partida e o retorno da mãe. Na ausência, a linguagem. Peter Bürger, num texto traduzido pela querida professora Irenísia Oliveira (UFC), sem publicação em português, interpreta a experiência freudiana concluindo que narrar é construir a possibilidade de determinar um sentido que a realidade não ofereceu. Assim é que meu romance não negaria a existência do real e o triste fato de termos eleito quem elegemos, mas procuraria recriar narrativamente a consistência e a opacidade de um corpo que disse não ao fato.
Uma história me inspira: Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo. O romance português de 2009 ganhou neste ano de 2018 sua primeira edição no Brasil pela Todavia. Neste livro, Isabela Figueiredo narra em primeira pessoa a experiência de ter vivido os últimos anos de dominação colonial de Portugal sobre Moçambique. Tendo sido filha de um funcionário do Estado Novo, irremediavelmente branca num lugar em que o poder era branco e o medo e a miséria eram negros, Isabela conseguiu reconstituir a posteriori, na liberdade do jogo ficcional, a verdade de sua experiência. A experiência de aspirar o cheiro do colonialismo no suor do próprio pai. Na narrativa, o cheiro repulsivo e o amor filial incontornável ganham a possibilidade de significação, ambígua, irônica e dolorida.
Em 21 de novembro de 1975, pouco mais de um ano após a Revolução dos Cravos, que derrubou Marcelo Caetano do governo português, e consequentemente possibilitou a luta pela emancipação em Moçambique, Isabela, com 13 anos de idade, foi embarcada sozinha em um avião da TAP. De Lourenço Marques, que em breve seria Maputo, a Lisboa. Nesse dia, a narradora menina viajaria com uma missão: chegar a seu destino e contar toda a verdade.
“Transmitiram-me o recado no caminho até o aeroporto […]. Repetiram-mo. ‘Não te esqueças de contar”. […] ‘… agora, lá [em Lisboa], são muito amiguinhos dos pretos, mas tu vais explicar-lhes que isto não é como eles pensam. Defendem-nos, mas ninguém fala do que nos fazem os pretinhos… Contas tim-tim por tim-tim os massacres de setembro. Contas tudo o que nos aconteceu” (2018, p. 99).
Essa a missão dada a Isabela por seu pai e sua mãe. “Vais contar lá o que nos fizeram. A verdade. Vais dizer.” Mal podiam imaginar, esse pai e essa mãe, que a menina Isabela queria, “como uma criminosa de guerra, voltar costas a toda aquela esquizofrenia” que não lhe permitia ser quem era. Mas lhe faltava ainda uma “gramática”, ou seja, uma linguagem para ela ser quem era e poder realizar a missão dada do seu jeito. Seu jeito, sua linguagem, ela inteira, “um sólido não” (p. 144). Desde criança, mesmo sendo a filha branca do funcionário português que a todos negros de Lourenço Marques explorava em nome da civilização, Isabela disse não ao colonialismo. O Caderno conta uma história conhecida, possui os mesmos referentes da história oficial sobre a emancipação de Moçambique, mas os sentidos que oferece são outros.
Que jeito é esse? Que linguagem? Isabela investiu esteticamente na difícil arte da ironia. Ela trata o discurso oficial do colonizador como uma língua que pode e que precisa ser “traduzida”, ou seja, exposta em seus próprios termos:
“Percebi que os colonos [os funcionários portugueses] desejavam a independência, mas sob poder branco. […] Ainda hoje os vejo envolvidos na mesma nostalgia. ‘A independência foi mal feita, e os culpados foram o Mário Soares e o Almeida Santos, que nos venderam e entregaram tudo aos pretos’. EU TRADUZO [destaque meu], ‘aquilo que entregaram aos pretos deviam tê-lo entregue a nós, que logo tratávamos da negralhada’. Quando revelam, com lágrimas sinceras, ‘deixei o meu coração em África’, EU TRADUZO, ‘deixei tudo lá, e tinha uma vida tão boa’” (p. 97)
A tradução do português para o português foi o jeito que Isabela construiu para realizar e ao mesmo tempo trair a missão dada pelo pai. Traduzir, aqui, implica admitir a coexistência de, no mínimo, duas linguagens. Uma é a linguagem da mentira, do ódio, do domínio violento e explorador; a outra é a linguagem da invenção, da ficção, que não tergiversa com a verdade, mas antes, como já disse Juan José Saer, multiplica ao infinito as possibilidades de tratamento da realidade, da falta, da ausência de sentido. Se eu tivesse que escrever um romance, seria provavelmente um romance muito ruim, mas guardaria em si esse aprendizado de uma tradução irônica dos discursos circulantes, sabendo-se machucado por eles, naufragado neles… O livro da Isabela Figueiredo traduz a missão da narrativa. Leiam!