[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
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primavera printemps
primavera printemps spring avultam
les cuisses de l’aurore noutros calendários
der fruehling des harpes et des luths
um arlequim um madrigal os lábios
este poema é feito de encomenda
obviamente sobre a primavera
podia sê-lo sobre o bolor dos vivos
tromboses coronárias sons-of-a-bitch
ou fazer strip-tease com o mosto
da martelada esperança literata
com lágrimas na voz e os dois tiques no rosto
a que esses gajos já não ligam nada
ou circular nas gares subterrâneas
e nas torneiras do metropolitano
onde nos rails silvam sarabandas
e onde não passam as estações do ano
podia sê-lo sobre a primavera
de coração hialino corpo inteiro
hélas chers confrères este nosso signo
peninsular é sempre o do carneiro
p.s. ̶ pois o poeta quase disponível
o fez agora mesmo a esferográfica
(ainda se ao menos fosse feito à máquina)
̶ que a letra dos poetas é incrível
e já o camões morreu por sua pátria
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sete sonetos com muito amor
alguns nomes e uma certa ironia
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(a escrita é impensável) a ocupação dos sonhos
modalidade de delvaux pintando
as estações nocturnas como le nôtre
concebia jardins uma surda harmonia
permeada de razão, na verdade o poder
todo o poder tem lógica, corrompe
qualquer visão vulgar. veja o perfume
rendilhado dos cravos a matéria vegetal
contudo algumas coisas são sombrias
eu chamo a isso o íntimo da forma
o entrecortar das palavras vozes vozes
que os sentidos recuperam
superaremos a indicibilidade?
Ivanka stoianova escreve que
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os rostos comunicantes
mas, de tantas solidões da arte,
como escrever sobre uma, não a partir dela,
cabeça de rapariga, um perugino
sobre papel cinzento?
como falar de retratos, da sua reverberação anímica,
daqueles que precisam da quase obscuridade,
luz velada que os preserve? sua mina, de chumbo,
crayon branco, papel de desbotar?
como falar de sua neutral beleza, seus ovais sugeridos
ou delindo-se? como das metamorfoses, do tempo,
de antónio quarateni
que miguel ângelo desenhou, captando-lhe
na juventude oblíqua, o seu olhar ambíguo, feminino,
cerca de 1530? ou de um
dos quatro desenhos de filippino lippi
e de raffaellino
do libro de’ disegni? como captar
em palavras escassas, com hipálages graves, seu aquele
interior sossego de modelo ̶ nada a ver
com a indiferença mas a pura
transfiguração do lápis? ou como, se quiserdes,
transpor o vício quase entreaberto
de um burne-jones no estudo
para uma das graças de vénus manlia,
o seu olhar velando
promessas indiferentes?
ou ainda uma
mulher deitada de klimt,
de bruços, sua ausência
sensual de olhar em arabesco? ou aquela
cabeça de rapaz, de lupi,
hoje na capa de um livro, o meio sorriso
que ignora a morte e a tem presente?
questões, questões,
inodoras, sem música, mentais melancolias indizíveis,
que têm a ver com uma verdade da arte
ou com a sua mentira (a mais grave da nossa condição),
no mais fundo de aceitarmos uma ou outra, o
simulacro de um conhecimento, de tantas nossas
inquietações, esperanças; tempos outros? morte?
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jardins do séc. xvi, hypnerotomachia
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as relações entre os lamentos do saber
e a realidade são mais súbitas
e subtis nos jardins do renascimento: aqui
passeou isabella d’este, meditando
a sua divisa do silêncio
e outras simetrias disciplinadoras
da natureza. o plano mostra
como foi esquadriado o sonho e batem
certos os lugares da água. os pássaros
descuidar-se-iam na folhagem
do desconcerto do mundo. de bronze
o jovem fauno de braço levantado
faz um convite: eamus ad nymphas. a fonte
fica ao fundo da biblioteca.
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os usos da adversidade
de repente, é este o uso da adversidade:
as crianças que ficam aprenderam a matar,
no brasil, em angola, na bósnia, em moçambique,
usam a adversidade como uma faca assassina,
de repente uma urgência, um rebate de sinos,
cidades destruídas casa a casa e corpos
e armas abandonadas e incêndios e
silêncios no silêncio, rumores de pó, mais corpos.
usam a adversidade como uma carabina.
de repente os motores de um avião que parte
a sua sombra pousa como a asa do destino
nas oliveiras feridas de ruína em ruína
e o ruído que faz nestes montões a morte
como se morrer fosse uma cava rotina.
Perfil
Vasco Navarro da Graça Moura nasceu em Foz do Douro (Porto) em 2 de janeiro de 1942 e morreu em Lisboa em 27 de abril de 2014. Poeta, romancista, cronista, ensaísta, tradutor e político, publicou Modo Mudando, o seu primeiro livro de poemas, em 1963. A ele seguiram-se: Semana Inglesa (1965), Quatro Sextinas (1973), O Mês de Setembro e Outros Poemas (1976), Recitativos (1977), Instrumentos para a Melancolia (1980), A Variação dos Semestres deste Ano; 365 Versos Seguido de a Escola de Frankfurt (1981), Nó Cego, o Regresso 1982), Os Rostos Comunicantes (1984), A Sombra das Figuras (1985), A Furiosa Paixão pelo Tangível (1987), O Concerto Campestre (1993), Sonetos Familiares (1995), Regresso de Camões a Lisboa (1996), Uma Carta no Inverno (1997), Testamento de VGM (2001), Letras do Fado Vulgar (2001), Antologia dos Sessenta Anos (2002) Variações Metálicas (2004), Mais Fados & Companhia (2004), Os Nossos Tristes Assuntos (2006), O Caderno da Casa das Nuvens (2010), Poesia Reunida vol. 1 (2016), Poesia Reunida vol. 2 (2016), A Puxar ao Sentimento ̶ 31 Fadinhos de Autor (2018, póstumo). No campo do ensaio, publicou cerca de 21 títulos, além de 13 romances, duas novelas e dois livros de crônicas. Realizou ainda um trabalho notável como tradutor de Dante, Petrarca, Ronsard, François Villon, Molière, Corneille, Racine, Voltaire, Shakespeare e Rilke. Dirigiu o Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi deputado do Parlamento Europeu de 1999 a 2009. Em 2012, assumiu a presidência da Fundação Centro Cultural de Belém. Foi distinguido com inúmeros prêmios literários, entre os quais destacam-se: Prêmio de Poesia do Pen Clube (1940), Prêmio Pessoa (1995), Grande Prêmio de Poesia da APE (1998), Grande Prêmio de Romance e Novela APE/IPLB (2004), Prêmio Vergílio Ferreira (2007), Max Jacob de poesia estrangeira (2007) e Prêmio de Tradução do Ministério da Cultura italiano por suas traduções de Dante e Petrarca.