Por causa da greve que se arrastava há meses, não existia policiamento em toda a cidade. Então, isso queria dizer, seja para os perspicazes, seja para os temerosos, que o crime poderia acontecer a qualquer momento, uma vez que os bandidos tinham não só a facilidade, mas também os instrumentos com os quais poderiam perpetrar a violência mais nefanda e ̶ dependendo do poder de destruição ̶ a mais indecente crueldade.
Naquela noite, em decorrência da chuva e do frio que tornavam as ruas ainda mais desertas e a fachada dos prédios mais lúgubres, com as suas janelas no alto emitindo luz mortiça, a ratazana que acabara de sair do bueiro farejou o ar e, quando levantou o corpo para o alto, como se fosse uma doninha, recebeu algumas gotas que vinham do céu lacrimejante e que, por serem dóceis, não interromperam a sua pose.
Extasiada com a tranquilidade e o vazio urbanos, lembrou-se de que, em sua existência, nunca presenciara uma rua tão erma e uma noite tão fantasmagórica, a não ser agora pelo estatelar das águas que desabavam sobre as superfícies duras. A boa chuva que os hebreus imploraram em vão, há muito tempo, no deserto, e que agora lava a cidade.
Do jeito que só as ratazanas se divertem, ela se encaminhou despreocupada e saltitante para o restaurante que ficava do outro lado da calçada, onde, entre as latas de lixo, com alguma sorte, poderia encontrar restos de comida e depois, em consequência de seu desprezo atávico pelos humanos, contaminar com vírus os alimentos que se encontravam distribuídos nas prateleiras da dispensa.
Com base em seu sentimento moral, essa ratazana até poderia ter alguma complacência: assim, somente os vírus menos atrozes contaminariam os alimentos, enquanto reservaria para a próxima visita os pestilentos.
Não muito longe, sob o vão da escada que o abrigava, cansado de ter os ossos retorcidos pelo frio, o homem desfez-se dos trapos e do papelão que o cobriam e olhou ora para um lado, ora para o outro, sentindo enorme raiva, que o alimentava todos os dias ̶ essa raiva que também não compreendia, por mais que pensasse sobre esse sentimento.
Como não viu nada mais reluzente, decidiu encaminhar-se em direção ao restaurante, cujo luminoso incomodava a sua visão, ao mesmo tempo em que lhe prometia um prato de comida, caso as pessoas daquele estabelecimento grã-fino respeitassem a máquina que carregava na cintura.
Exceto pela água que borrava a tinta do grafite recentemente pintado na parede à sua frente, do outro lado da calçada, onde via figuras de super-heróis desfazerem-se deslizando borrões para baixo, o dono do restaurante considerou mais uma vez que a vitrine que o separava do mundo naufragado que ficava do outro lado era uma forma de mantê-lo preso atrás de um balcão.
Porém, com rala esperança, ansiava ver, a qualquer momento, a bela mulher com quem conversara um dia abrir a porta de seu restaurante para compartilhar uma taça de conhaque francês e conversar sobre as besteiras do mundo. No caos em que se transformara a cidade, perguntava a si mesmo sobre os encontros inesperados:
“Onde ela estaria agora?” ̶ e imaginou o bem que ela lhe faria naquela noite silenciosa, úmida e despovoada.
Naquela cidade, onde o crime poderia acontecer a qualquer momento, a chuva e o frio castigavam os telhados e faziam certas árvores gemerem quando eram vergastadas pelo vento.
A despeito do tempo desfavorável, o dono do restaurante levantou-se e dirigiu-se até a entrada, de onde viu um rato descomunal atravessando aos pulos a rua e, não muito distante, uma pessoa estranha aproximando-se cautelosamente, como se guardasse más intenções.
Naquela noite, entre a chuva e o frio, poderia haver um desacerto, mas tudo afinal dependia dos pormenores, sempre eles ̶ os pormenores que desenham os acontecimentos com as tintas mais alegres ou as mais desprezíveis, segundo o mestre Goya .
Gostei muito! A pouca nitidez da noite que aguarda imprevistos é construída por uma narrativa também construída por verbos, cuja temporalidade imperfeita ou condicional favorece o desenho de acontecimentos conforme os pincéis do mestre Goya.