É verdade que apenas os corações já por demais emperdenidos não se deixam enlevar diante de uma boa love story, mas por que será que as histórias protagonizadas pelas heroínas românticas de Jane Austen (1775-1817) continuam a nos fascinar, sobretudo a nós, leitoras? Qual seria o segredo do encanto dessas mocinhas ingênuas e casadoiras pertencentes a um tempo tão distante do nosso e que são as protagonistas dos romances da autora inglesa?
Não vale a resposta manjada e conservadora de que esse sucesso se deve ao fato de que, no fundo, os romances da escritora sempre terminam realizando o desejo, ainda que inconfessado, de toda mulher: a chance de fisgar um bom partido, que lhe cubra de joias e satisfaça seus mínimos caprichos. Pois, ao menos para mim, os desenlaces das tramas de Austen – quando a mocinha e o mocinho, depois de muitas reviravoltas, confessam sua paixão recíproca – sempre me pareceram uma espécie de anticlímax. É como se a magia se evanescesse no momento em que Mr. Darcy enfim beija Elizabeth Bennett: a felicidade finalmente alcançada já pressagiando a modorra da vida conjugal.
Convenhamos, a história de amor em Austen acaba por ser algo secundário. Perto das Elizabeths, Emmas, Elinors, Annes, Fannys, Mariannes, as heroínas dos seus romances, os rapazes que as cortejam nos parecem figuras apáticas, carentes de brilho e profundidade. O grande apelo dos livros da autora está na potência de suas personagens femininas, invariavelmente jovens mulheres que experimentam um processo de autoconhecimento e de descoberta do mundo e procuram afirmar sua identidade em uma sociedade – a Inglaterra pré-vitoriana – que as condenava à invisibilidade e ao silenciamento.
Jane Austen escreveu e viveu em um período conturbado politicamente, marcado pelas Revoluções Americana e Francesa e pelas guerras napoleônicas. A não ser por rápidas alusões nos diálogos entre um ou outro personagem, essas turbulências políticas da época passam distante da sua obra. O universo austeniano é o de veludo, rendas e seda, de saraus de poesia e música, de piqueniques e jantares elegantes no qual se movimentavam a nobreza e a burguesia dos vilarejos ingleses de final do século XVIII e início do XIX e que parece infenso às grandes transformações desse período.
A autora nunca teve também a pretensão de confrontar abertamente padrões de comportamento, e considerá-la como uma feminista avant la lettre seria incorrer num equívoco imperdoável. Aliás, como romancista, ela também se via como educadora, e seus livros sempre trazem alguma lição sobre os riscos de uma conduta considerada à época como moralmente reprovável. Mas se Austen não chega a colocar em causa os austeros códigos de conduta nem a rigidez da hierarquia social de seu tempo – embora o tom irônico que imprime nos seus textos não deixe de ser uma crítica sutil às convenções da época –, ela procura, em contrapartida, dar expressão às angústias e inquietações femininas das quais compartilhava, abrindo espaços de liberdade em sua obra para que esses temas pudessem vir à tona.
A própria Jane Austen foi, na vida pessoal, muito mais avançada do que suas criações literárias. Em um tempo em que às mulheres de sua classe social era recomendado que fossem virtuosas, submissas e modestas e limitassem os seus dotes intelectuais a atividades como a música, o desenho e os bordados – a ciência, a filosofia, a literatura eram exclusivas da seara masculina −, ela publicou seis romances, todos sob pseudônimo, além de uma peça para teatro e outros textos esparsos. Pecado supremo, permaneceu resolutantemente solteira, recusando, ao que se sabe, pelo menos uma proposta de casamento. Uma atitude temerária em um meio que determinava a toda mulher a obrigação de se casar ainda jovem, a fim de assegurar o status social e a própria sobrevivência.
Tamanha ousadia, Jane Austen não permitiu a suas personagens. Emma, a protagonista do livro de título homônimo, neste ponto é a que mais se aproxima da autora, na sua firme decisão anunciada nas primeiras páginas do livro de jamais se casar. Porém, não é preciso prosseguir muito na leitura para constatar de imediato que essa pretensão não passa de devaneio de uma jovem que ainda está ensaiando os seus primeiros movimentos na vida adulta. Nessa obra − que não deixa de ser um romance de formação −, Emma, à medida que for amadurecendo, ao mesmo tempo em que vê despertar a sua feminilidade, também toma consciência do papel que ocupa no seu ambiente social e termina por ceder à razão prática de Mr. Knightley, um misto de par romântico e tutor.
Emma é uma mocinha impetuosa, um tanto egoísta e mimada que provoca risos com suas tentativas desastradas de servir de cupido para os outros, sempre tão ocupada com os corações alheios que deixa de prestar atenção a seus próprios sentimentos. Austen construiu em Emma uma personagem adorável, mas ela está longe de alcançar a estatura das duas grandes figuras femininas dos seus romances: Elizabeth, de Orgulho e Preconceito, e Elinor, de Razão e Sensibilidade.
Elizabeth e Elinor têm, à primeira vista, personalidades completamente opostas. A primeira é vibrante, de uma franqueza e uma espontaneidade naturais, que não teme expor seus pontos de vista, mesmo que eles possam causar atritos junto às sensibilidades ultraconservadoras e hipócritas dos ambientes nos quais circula. A segunda é mais introvertida, pouco afeita a demonstrar seus sentimentos e opiniões, suportando estoicamente os preconceitos e humilhações de que ela e sua família empobrecida são alvo. Ambas, no entanto, guardam em comum o fato de permanecerem autênticas e fiéis aos princípios que estabeleceram para si mesmas, julgando as pessoas com as quais se relacionam de acordo com esse código de valores pessoal e não em conformidade com a riqueza e o poder que estas possam ostentar.
À força interior dessas duas personagens, outro elemento que as torna tão interessantes é porque, por meio delas, Jane Austen denuncia a triste condição das mulheres de seu tempo, reprimidas no espaço privado pela rígida moral puritana da sociedade inglesa e, no espaço público, destituídas dos direitos mais elementares, incluindo o de herança. Mesmo mulheres provindas de famílias abastadas corriam o risco de cair na miséria, ou pelo menos descer muitos degraus na escala social, porque não tinham direito à herança, dependendo da boa vontade dos irmãos ou parentes próximos que herdavam os bens paternos para assegurarem uma fonte de renda para que conseguissem se manter. Uma ameaça que, se não se materializa para Elizabeth e suas quatro irmãs – embora constitua o grande pavor da mãe delas, Mrs. Bennett, que por esse motivo se lança numa furiosa e hilária campanha para casar as filhas –, torna-se concretamente humilhante para Elinor, despejada da mansão luxuosa onde vivia junto com a mãe e as duas irmãs, assim que o patriarca da família morre. Toda a fortuna é transferida para o filho do primeiro casamento do pai, e elas são obrigadas a viver modestamente numa pequena casa no interior do país.
Evidentemente, a redenção de Elizabeth, e de sua delicada irmã Jane, e de Elinor, e de sua passional irmã Marianne, dar-se-á pela via do casamento, quando, depois de muitas reviravoltas, elas se unem a distintos e apaixonados cavaleiros que as salvam da pobreza e da humilhação. Da mesma forma, Fanny, a protagonista de Mansfield Park, só se livra da sina de ser a eterna prima pobre morando de favor na casa dos parentes ricos quando alcança o status de esposa. Ainda que a condição financeira não esteja em causa no caso da já citada Emma, e também de Catherine, de Northanger Abbey, e de Anne, de Persuasão, o matrimônio surge como a forma de realização pessoal para essas três personagens. Em Austen, todos os caminhos levam ao altar.
No entanto, o que importa é que as mulheres dos romances de Austen procuram agir como pessoas autônomas, capazes de decidir livremente. Essa conduta ainda está longe de significar participação na vida política ou independência financeira, mas reclama o direito de realizar um casamento por amor. Numa época em que os matrimônios eram vistos como contratos a serem firmados pelas famílias dos noivos, um casamento que levasse em conta apenas os sentimentos já era um primeiro movimento de libertação do indivíduo – em última análise, se a obra de Austen ensaia alguns passos, ainda que tímidos, para um debate em torno da emancipação feminina, essa emancipação também se revela libertadora para os homens.
Jane Austen no cinema e na TV
Os romances de Jane Austen já tiveram diversas adaptações audiovisuais, entre filmes e séries para a TV. Gosto especialmente da série baseada em Orgulho e Preconceito realizada pela BBC em 1995, em seis episódios, com direção de Simon Langton. A atriz britânica Jennifer Ehle está perfeita como Elizabeth Bennett, e podemos ver um Colin Firth antes do estrelato dar a medida certa para o papel de Mr. Darcy, carrancudo e antipático inicialmente, para depois se revelar um jovem romântico e idealista. A série fez enorme sucesso e rendeu o Bafta de melhor atriz a Jennifer Ehle, além de ter dado um grande impulso à carreira de Firth. Como é de praxe nas produções da BBC, os cenários e figurinos são de alto nível e todo o elenco, além dos protagonistas, é excelente, com destaque para Alison Steadman, hilária na pele da casamenteira Mrs. Bennett.
No cinema, Orgulho e Preconceito, que é sem dúvida o livro mais popular de Jane Austen, tem uma versão de 1940, dirigida por Robert Z. Leonard, e com o lendário Laurence Olivier emprestando toda a sua elegância a Mr. Darcy e Greer Garson vivendo uma altiva Elizabeth. Em 2005, Joe Wright levou novamente uma adaptação do romance para as telas, com Keira Knightley na pele da protagonista. Apesar de alguns cacoetes de interpretação, a atriz encarna uma Elizabeth ao mesmo tempo doce e irreverente e consegue uma boa química com o seu par romântico, Matthew Macfadyen (Mr. Darcy). Os demais atores também são notáveis, destacando Donald Shuterland como Mr. Bennett e Brenda Blethyn como uma impagável Mrs. Bennett.
Outra produção que vale muito ser vista e revista é a versão de Ang Lee para Razão e Sensibilidade, de 1995, que levou o Globo de Ouro de Melhor Filme e o Oscar de Melhor Roteiro para Emma Thompson. Thompson, aliás, é também quem dá vida a Elinor, a heroína do romance, numa interpretação sensível e delicada, que se casa maravilhosamente bem com a atuação enérgica de Kate Winslet como Marianne, a impetuosa e passional irmã mais nova da protagonista. O único ponto franco é Hugh Grant, que imprime um ar abobalhado a Edward Ferrars, o par romântico de Elinor. Com menos brilho, mas nem por isso descartável, Emma (1996), baseado no romance homônimo de Jane Austen, traz Gwyneth Paltrow no papel título, numa interpretação simpática e convincente.
Veja abaixo alguns trechos das produções:
Adorei Rosângela, uma análise delicada, acurada, e bem escrita como a deliciosa literatura de Jane Austen.