De tanto recitar a velha história da menina que atravessa uma floresta cheia de perigos para visitar uma avó doente, acabei recriando eu mesma uma versão pessoal para minha pequena Teresa, observando os elementos que mais lhe chamam atenção e, do mesmo modo, os que mais lhe causam medo. Por exemplo, a gallete e o pote de manteiga da narrativa de Perrault tiveram que ser substituídas por um bolo de chocolate – o objeto de desejo desse momento. O lenhador dos Irmãos Grimm não serve como mocinho. Todas as vezes que inseri essa figura, Teresa interrompeu a contação de história para brincar com outra coisa, porque acaba distraída ou entendiada. Acabei pegando de empréstimo a Chapeuzinho Amarelo, do Chico Buarque, que ouve o pedido de socorro da amiga e a salva.
Chapeuzinho Vermelho é um mundo para ser explorado: há ainda a versão italiana recolhida por Italo Calvino com o título de A Falsa Avó (está nas Fábulas Italianas), além de inúmeras atualizações modernas e contemporâneas como a divertida leitura de Marjolaine Leray (de 2009, traduzida por Júlia M. Schwarz na Cia. das Letrinhas) e a sombria animação de Jorge Jaramillo e Carlo Guillot (2012); contem-se também as várias interpretações, entre as mais conhecidas, a leitura psicanalítica de Bruno Bettelheim. Entre tantas recriações e análises, volto hoje à primeira redação, feita por Perrault, em 1695 (sem a régua da “versão original”, porque sabemos que o gênero contos de fadas, vindo da tradição oral, vive e sobrevive na metamorfose). Volto ao conto de Perrault, porque nele o famoso leitor Alberto Manguel encontrou uma Chapeuzinho Vermelho sedutora com qualquer coisa de inocência tentadora (o texto em francês está no livro M. Bovary & Autres Personnages, L’escampette editions, 2013).
Que o texto de Perrault é violento e erotizado, não resta dúvida. Mas não consigo encontrar o je ne sais quoi de sedução na personagem de Chapeuzinho. Vejamos (estou usando a tradução de Maria Luiza X. de A. Borges para a Zahar): no caminho, quando encontra o lobo, o narrador diz logo que o bicho teve vontade de comê-la. Isso, contudo, sem que Chapeuzinho realizasse qualquer gesto ou abrisse a boca para seduzi-lo. O lobo consegue enganá-la para chegar antes à casa da avó, que devora. Na sequência, a menina, alcançando o mesmo destino, encontra uma avó muito esquisita, mas acredita na farsa. Mais uma vez, Chapeuzinho não tem voz. No tempo de Perrault, não havia nem a prática do discurso indireto livre para nos oferecer seus pensamentos e sentimentos. O lobo disfarçado de avó diz: “ponha o bolo e o potinho de manteiga em cima da arca e venha se deitar comigo”. Chapeuzinho assim o faz. Essa versão de Perrault termina, como todos sabemos, com a velha e a garota mortas.
“Comer” e “deitar-se com” são claras referências ao ato sexual. O desejo do lobo não demora a se expressar, mas onde está, ainda que subentendida, a vontade de sedução da menina? Leio e releio. Só consigo pensar nessa motorista über assassinada em Goiânia depois de ter se recusado a ceder ao desejo sexual de um passageiro homem. E sabemos pelos jornais que Parsilon Lopes dos Santos não era nenhum lobo desconhecido. Uma falsa avó doente com fome. Vanusa da Cunha Ferreira, 36 anos, foi morta na última sexta-feira, dia 18 de janeiro de 2019, simplesmente porque seu corpo deveria estar disponível. A leitura masculina de Alberto Manguel é elucidadora nesse sentido. Não há intuito de sedução na personagem de Perrault; por outro lado, ocorre na cabeça dos homens a presunção de um desejo que, no fundo, é apenas o deles. Vanusa da Cunha Ferreira, 36 anos, é mais uma garota morta.
Garotas Mortas é também o título do livro de Selva Amada (2014). A autora argentina é conhecida pela qualidade de sua prosa de ficção (leiam O Vento que Arrasa, que saiu pela Cosac em 2015). Nesse livro de não ficção, no entanto, ela se dedica a relatar a experiência de investigar os assassinatos de três jovens mulheres ocorridos na década de 80 na região de Entre Rios. Assassinatos nunca resolvidos, feminicídios tratados como casos sem importância. A voz narradora, em primeira pessoa, é totalmente autoral. Enquanto reúne e tenta compreender o que teria acontecido com Andrea, María Luisa e Sarita, Selva Amada fala de si, de sua criação para ser mulher. Em outras palavras, fala do que viu e ouviu de homens e mulheres sobre o que é ser mulher, com mais especificidade sobre o que é ter um corpo de mulher e sobre a insegurança permanente que isso pressupõe.
Sua tentativa de narração, ou seja, de concatenação de fatos de modo a produzir sentido, não encontra solução. Selva Amada não se pretende uma Sherlock Holmes. Mas ao tentar, como diz, “reconstruir o jeito como o mundo olhava para elas (para as três garotas mortas)”, a autora nos faz olhar para o modo como o mundo olha as mulheres:
Sarita também trabalhou desde pequena. Ela não tinha opção, porque sua família era muito pobre. Seu último emprego antes de se casar foi como faxineira na casa de um médico. Ali a tratavam bem, quase como uma filha, e a incentivavam a estudar. Mas acabou engravidando e se casou. Era bonita demais para que o marido a mandasse trabalhar de novo como doméstica. Tanta beleza desperdiçada entre produtos de limpeza. Por isso ele a mandou se prostituir. (Selva Amada, Garotas Mortas, 2015, p. 74).
Na versão de Perrault, o lobo se traveste de mulher para garantir a aproximação de seu objeto de desejo. Do ponto de vista feminino, de outra maneira, o travestimento foi uma estratégia para escapar aos lobos, fazendo-se uma mulher passar por homem. Deveria listar aqui todas as mulheres que se disfarçaram de homens para trabalhar, escrever, praticar esportes, lutar em guerras. Seria uma homenagem merecida. Sobreviveram.
Vou destacar apenas dois casos pelos quais tenho afeição, dada a dimensão trágica que cada um carrega, a seu modo. Riobaldo se apaixonou por um companheiro de jagunçagem, descobrindo a verdadeira identidade apenas ao ver seu corpo de mulher morta. Fica sugerido que Riobaldo poderia ter salvo Diadorim. Não o teria feito por lutar contra o desejo que acreditava ser homossexual? Mas a pergunta que sempre me fiz foi: como Diadorim mulher poderia ter passado tanto tempo entre jagunços sem ser molestada e violentada? Na legenda áurea, conta-se a história de uma menina chamada Marina que, no século VIII, tendo perdido a mãe e diante da decisão de seu pai de abandoná-la à própria sorte para tornar-se monge, resolveu travestir-se de homem para ela também ingressar na vida monástica. Ficou conhecida como monge Marinho e, como tal, foi falsamente acusada daquilo de que sempre fugiu: de ter estuprado e matado uma jovem numa estalagem qualquer em algum lugar do atual Líbano. A Igreja Católica canonizou Marina como Santa Marina de Bitínia.
Na edição de 22 de janeiro de 2019, o jornal O Globo noticiou: “Cento e sete casos de feminicídio foram registrados desde o início do ano, uma média de cinco ocorrências por dia. O levantamento foi realizado pelo professor Jefferson Nascimento, doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP), com base no noticiário nacional”. Some-se a isso o decreto que flexibiliza a posse de armas assinado pelo novo presidente da república. A vida foi e continuará sendo uma floresta escura, uma vereda torta, com uma mulher morta no caminho. Ainda pode ser eu, ainda pode ser minha filha. Na vida real, somos todas Chapeuzinho Vermelho, afinal somos todas garotas.
Show de erudição. Que delícia de texto. Um monte de coisas que eu não sabia. Por não ser mulher e por não ter estudo.
Texto fantástico, crítico e analítico… Faz a cronologia da luta de cada dia de ser mulher e sobreviver aos lobos…