O verbete “virilidade” do Dicionário Houaiss traz, entre as várias definições da palavra, o significado de “conjunto dos atributos e características físicas e sexuais do homem, masculinidade” e “capacidade do homem de realizar o ato sexual ou de procriar”. De forma mais corriqueira, “viril” é sinônimo do macho na plenitude da sua potência sexual, sobretudo quando esta é conjugada com a força e o vigor de bíceps avantajados. No entanto, os termos “virilidade” e “viril” guardam uma outra conotação que não está associada a atributos físicos, mas às qualidades do intelecto e do caráter moral – e, sob esse aspecto, esses predicados também podem ser femininos.
No seu clássico tratado The Foundations of Modern Political Thought, o historiador britânico Quentin Skinner recupera o significado de vir virtutis que aparece na obra de Cícero (106 – 43 a.C). Como define o grande orador e filósofo romano, a palavra “virtude” (virtus) tem suas raízes em vir, termo latino que designa “homem” no sentido de “varão”, ou seja, “pessoa do sexo masculino” (as outras palavra latinas para homem são também “homo” e “hominem”). Para Cícero, a educação deveria ter como ambição o cultivo e o desenvolvimento do homem virtuoso (vir virtutis), que empenhasse todos os seus esforços naquilo que é fundamental para “ser um homem”.
Por essa concepção, o verdadeiro homem viril é o homem virtuoso (vir virtutis), aquele que alcançou o ápice da excelência humana. E sobre quem pode ser dito o mesmo que Marco Antonio afirmou a respeito de Brutus, na peça Júlio César, de Shakespeare (o exemplo é de Skinner): “Este era um homem”.
Mas qual era o meio indicado por Cícero para se tornar um vir virtutis, que seria o cume da realização do homem enquanto tal? Em primeiro lugar, devia-se procurar o caminho da sabedoria. Para tanto, tornava-se necessário dedicar-se ao estudo da filosofia moral, central para a formação do caráter. Contudo, esse conhecimento, por si só, não era o suficiente, porque era preciso também colocá-lo em prática. Daí a importância, no projeto formativo ciceroriano, da arte da retórica: não bastava saber, mas falar bem, de forma a persuadir os demais.
A união da sabedoria com a eloquência tornava, assim, aqueles que dedicavam-se a elas aptos a exercer influência nos assuntos públicos. Para quem dedicou-se à vida pública como Cícero, a excelência humana não se revelava na condição do sábio voltado para os seus livros e suas reflexões, mas na convivência humana, entre cidadãos.
O ideal de vis virtutis concebido por Cícero influenciou todo o humanismo clássico, culminando, como descreve Quentin Skinner, no modelo do “homem do Renascimento” ou do Uomo universale, aquele que almeja uma excelência universal. Esse Uomo universale representa um projeto educativo que contempla o homem em sua totalidade, que o permita desenvolver todas as suas potencialidades. Como Ofélia diz a respeito de Hamlet (outro exemplo de Skinner), ao exaltar a “nobre inteligência” do trágico herói: “O olho do cortesão, a língua e o braço do sábio e do guerreiro, a mais florida esperança do Estado, o próprio exemplo da educação, o espelho da elegância” – seja na arte de governar, seja na estratégia da guerra, seja no papel de sábio e ainda como modelo de refinamento e bom gosto, o homem renascentista tem a ambição de triunfar em todos esses campos.
Deve-se fazer a ressalva de que, ainda à época de Cícero, o que se opunha à verdadeira virilidade que se alcançava por meio do cultivo da virtude era a mollitia, a efeminação. Em seus discursos, uma das armas de Cícero para atacar os adversários era qualificá-los de “efeminados”, de agir como mulheres. Mas o que significava “agir como mulheres”, na visão do orador? Tinha o sentido de se submeter ao poder de um outro, de ter um caráter servil – em outras palavras, aceitar a ter um papel passivo e submisso, tradicionalmente atribuído às mulheres.
O homem viril, portanto, devia ser sempre um agente ativo, porém, essa qualidade tinha muito mais a ver com o fato de ter domínio sobre si próprio do que com a posição ocupada pelo macho na relação sexual, de dominação sobre a parceira (ou parceiro), aquele que penetra e não se deixa penetrar (muito embora deva ser lembrado que, apesar de os romanos antigos não condenarem explicitamente o homossexualismo, era considerado vergonhoso e sinal de efeminação para um homem assumir um papel passivo nas relações sexuais).
A ênfase nos poderes criativos do homem foi uma das características mais marcantes do Renascimento humanista, contrastando-se com a visão pessimista agostiniana da natureza humana, segundo a qual o homem, por si só, é incapaz de ser virtuoso e alcançar a excelência, necessitando sempre da graça divina. O homem renascentista não se vê como um ser decaído à espera dos favores dos céus – por seus próprios esforços, ele se acredita capaz de desenvolver sua “manly virtù”, como diz Skinner – em outras palavras, sua “virtude viril” – e empregar a sua liberdade para “se tornar o arquiteto e o explorador de seu próprio caráter” e controlar o seu próprio destino.
É verdade que essa visão otimista das capacidades humanas raramente alcançaria outras vezes na história um patamar tão alto – e que deixou como legado as grandes obras da pintura, da arquitetura, da poesia e da filosofia que caracterizaram o Renascimento. Mas, lembrando Heidegger, segundo quem as palavras carregam a memória de percepções passadas, é interessante recuperar o sentido de virilidade no humanismo renascentista, vinculado à ideia da mais alta excelência humana. Nesse sentido, tanto homens quanto mulheres podem ser viris, desde que desenvolvam as qualidades que os tornem verdadeiramente humanos.