O canal Viva acaba de reprisar um dos maiores sucessos das telenovelas brasileiras para comemorar os 30 anos de sua primeira exibição, em 1988. E o momento, três décadas depois daquele momento em que o folhetim de Gilberto Braga e Aguinaldo Silva eletrizou o País, não poderia ser mais oportuno. Aliás, melancolicamente oportuno, que fica até difícil falar em comemoração, mesmo para Vale Tudo, uma das obras televisivas mais contundentes, bem elaboradas e executadas que o público já viu. Nessas três décadas dá a impressão de que demos um giro de 360 graus.
As falas e as atitudes de vários personagens parecem ser de hoje, de uma atualidade que revela que o Brasil é, ciclicamente, uma nação que revigora suas mazelas. Em 1988, o País acabara de sair de uma ditadura militar e estava às voltas com a nova Constituição Federal. A Carta Magna, também chamada de Constituição Cidadã, era um sopro de esperança para uma população que se frustrara por ter sido obrigada a esperar mais um pouco para votar para presidente e que acompanhara o drama que findou com a morte de Tancredo Neves e a ascensão de José Sarney ao Planalto.
A novela, vira e mexe, faz um retrato daquele instante, com suas incertezas e expectativas. Personagens que aludem aos conchavos da política, aos interesses conflitantes em um País cheio de paradoxos, às voltas com desigualdades e planos econômicos bizarros. Ali estão o preconceito contra o jovem negro que é visto a priori como um delinquente, contra o casal de lésbicas, que são discriminadas, contra a parcela pobre da população. Os mais ricos, o tempo todo, desprezam quem tem menos dinheiro, chamando-os de “gentinha”, lamentando sua própria existência.
Criações como as vilãs Odete Roitman, interpretada à perfeição pela atriz Beatriz Segall, e Maria de Fátima, a jovem alpinista encarnada por Glória Pires, funcionam na trama como arquétipos de algo que o Brasil tem de pior. A poderosa empresária que atropela tudo e todos em nome de sua ambição, que faz fortuna numa terra que odeia, que faz distinção das pessoas por sua origem ou nível de instrução. Ela ofende indígenas, negros, trabalhadores, debocha de hábitos culturais e de quem tenta ganhar a vida honestamente. Poderia estar em altos cargos públicos hoje em dia.
Maria de Fátima, por sua vez, é a nova-rica deslumbrada, que vende a alma para o diabo e até a casa da própria mãe para dar um golpe da barriga e, assim, manter-se em um nível de vida em que sempre sonhou, luxuoso e vazio. Hoje, talvez tivesse uma conta do Instagram com milhões de seguidores, virado uma digital influencer que ensina o que não tem importância para um monte de gente tão superficial quanto ela. Para seu amante, um gigolô já maduro (Carlos Alberto Riccelli), que cultua o corpo e desfila com tangas sumárias, não seria difícil encontrar um equivalente atual.
A cada capítulo, uma armação. Até o executivo honesto, o Ivan de Antônio Fagundes, se mete em um caso de corrupção e é o único que acaba se dando mal, amargando uma cana por seu deslize. Justamente o que menos cometeu crimes e o que não enriqueceu roubando dos outros. E nesse momento surgem frases como “nunca vi um rico ir para a cadeia no Brasil” e “os poderosos sempre dão um jeito de livrar a cara”. Nesse ponto específico, até que o País conheceu mudanças, com figurões da política e da economia se dando mal. Mas nem todos que mereciam, sabemos disso.
A cultura do jeitinho, do se dar bem a qualquer custo, de passar o outro para trás, tudo isso estava em Vale Tudo e permanecem 30 anos depois. Termos como “mamata”, “negociata”, “conchavo”, “ladroagem” são comuns no texto da novela e continuam a nos ser muito familiares hoje em dia. Ainda cultivamos um pensamento atrasado que impede que a renda seja melhor distribuída, ainda alimentamos o ódio ao que nos é diferente, ainda há muitos que priorizam os bens e não o caráter para escolher que tratamento dispensar a alguém. Ainda falimos como sociedade, periodicamente.
Em Vale Tudo, o personagem que melhor identifica em que País vivemos é o safado e cínico Marco Aurélio, vivido por Reginaldo Faria. Vice-presidente de uma grande empresa, ele passa a novela inteira desviando recursos, cobrindo rastros, comprometendo cúmplices. É o rei do roubo e do desvio. Consegue até encobrir o assassinato cometido por sua mulher. E no capítulo final, numa cena icônica, ele foge do País com o saldo de suas mutretas, dando, literalmente uma banana. Ali, como diz a música de Cazuza, o Brasil mostrou sua cara. E ela não mudou nos últimos 30 anos.