Dois em um (1983)
Eu sou o meu pai. Ele está dentro de mim, como labirintos que percorro tateando os signos que nos formam. Jogo de xadrez no salão de luxo dos paradoxos biológicos? Pergunta cuja resposta leva à síndrome da desorientação?
(Eu só sei ̶ e nem sei tanto assim! ̶ que nós pertencemos a uma linha contínua que se faz e desfaz-se.)
Como Freud suspeitava, pai e filho são apenas uma só entidade, ou seja, uma unidade múltipla, ou seja, o meu pai e eu somos um único ser dividido em dois. De forma enigmática, a genética, a psicanálise e a cultura escrevem nos corpos, por meio de linhas embaralhadas, os traços de um deus antigo. Nós ̶ eu e o meu pai ̶ somos prisioneiros um do outro, ambos feitos de uma mesma alma neurótica e de camadas de lembranças, as boas e as más. Uma delas diz, insinuando-se entre os desenhos das mitocôndrias:
“O filho continua no pai, a despeito do Todo, que é o princípio da História que, por ser da espécie e, portanto, eterna, perde-se entre o mito de Eva e, num laboratório de antropologia, entre os vestígios de um ocasional Pithecanthropus.”
Assim, no fio da narrativa sobre a espécie, o filho continua o início de toda história cujo começo foi escrito pelo mesmo e sempre pai. E, desse modo, o pai não morre no filho ̶ mas renasce nele. O pai eterno porque sempre o mesmo. Se me faço entender, pai e filho são o princípio de um só Todo ̶ o único que, por acaso, dividiu-se. E, se dividiu-se, como nas meioses, foi para transformar o dois em um.
Praia do Iguape (1983)
O mar. La mer. Il mare. The sea…
Expressões em línguas diferentes que nomeiam o mesmo contingente.
Ondas verdes ̶ um verde luminoso como se fosse um tom surpreendente da escala cromática ̶ que reverberam cintilações do Sol em suas cristas cinéticas, que vão e vem, nervosas e imponentes. Ondas que o mar enleva, ondas que vão e vêm em todos oceanos e mares.
Em outro extremo, do lado oposto, falésias cujo paredão despeja água aos borbotões de uma bica improvisada, como se fosse um chuveiro da Terra do Nunca e uma oferta à sede insaciável dos navegantes…
Dos dois lados, à esquerda e à direita, a praia deserta seguida de ondulações de dunas, cuja areia salina espalha-se à semelhança de um deserto. Com quantos mares o oceano precisa encontrar-se para receber o nome de Atlântico?
Ao fim de uma jornada previsível, eis a praia onde os barcos pesqueiros chegam um a um ao anoitecer. E, uma vez aportados, despejam sobre a areia a prata das escamas reluzentes de tantas tainhas e de tantos vermelhos e de tantas garoupas… Ó orixás dos mares, não desprezais nunca as sanfonas, as rabecas e as zabumbas quando a música for a comemoração de uma boa pesca e de um retorno tranquilo.
Odes, quais odes, se podemos perguntar? E se afinal pensarmos num épico, qual seria ele? O de Homero, o de Camões ou o de Pessoa? Todos os três em seus mares exclusivos, em seus confrontos com monstros inomináveis, e o vago temor de os marinheiros enlouquecerem de um dia para o outro e não haver terra à vista.
Qual nome esconde o receio da viagem pelo mar ̶ o vocábulo que plasma o sentimento mais visível dos navegantes?
O porto? A chegada? O naufrágio? O retorno? A partida? O Nada?
A noção do mar é a mesma da onda que, pela psicologia das águas, é escrita na praia sob a forma de arabescos em areias lavadas dia e noite, as quais, pela sua fugacidade, não se deixam ler porque são sucessivamente apagadas pelas marés ̶ essas caligrafias caóticas e sem referentes, que duram tão pouco…
O movimento das águas, cuja ação ininterrupta contra as barragens naturais não consegue abalar a rocha granítica encravada ao pé da imensa muralha.
Sem esquecer os mariscos e toda a sorte de outras espécies, uma noção de mar inclui uma navegação antiga e a primeira viagem de uma embarcação tosca e indeterminada.
Certamente insatisfatória e antiturística ̶ eis pois uma descrição da Praia do Iguape, que se localiza no município de Aquiraz, no Ceará, a 45 km de Fortaleza.
Nefelibata (1985)
Este colarinho puído, este tênis velho, este mal-estar que não sai do peito e ̶ por que o espanto? ̶ este corpo despercebido, tão castigado quanto despido pelos ácidos dos dias que nos engasgam. Este corpo afinal que só pretende oferecer abrigo em uma noite de frio. Por isso, nenhum pássaro cometerá o desatino de pousar na minha sorte.
A aranha na espreita tece ardilosamente os seus venenos. No entanto, a Aracne da mitologia protege-me dos piores insetos que às vezes me visitam agarrados ao lápis HB2, como um fungo alado cuja estratégia é escorregar gradativamente para a superfície lisa do papel. Sobre a mesa, o bestiário em miniatura. Em outro ângulo, entre objetos pequenos e delicados, a caixinha, que remete à beleza da Andaluzia, com a inscrição na tampa: “Te quiero”.
E, de repente, como uma epifania, vejo a sombra que o lápis projeta sobre a textura do papel ̶ e em seguida nasce o mistério da palavra.
Nas manchas que o lápis vai deixando, talvez eu seja entre tantas um ser falante, uma dessas caricaturas que escrevem tanto, que passarão a sofrer de logorreia. E, como todo usuário da palavra, escrevo estas anotações para que te lembres que um dia, quando comecei a fazer estes registros, tu estavas ainda em transe, à espera de umas mal traçadas linhas, nas quais haveria um enunciado que se despontaria em relevo: “Meu amor provinciano.”
Será agora, quero dizer, hoje, o reencontro de tua alma com aquilo que tenho de melhor ̶ a minha inútil escritura? Diga-me, pobre Musa, és tu a deusa que merecemos nos sonhos, nos dias opacos e sombrios e nas tardes que exalam perfume de tangerinas? A Musa que vai descer solene e enfeitada do Parnaso?
Nas atas de venda do capitalismo, nem todos podem ter um lápis Caran d’Ache que, pela sua áurea e fetiche, concede o seu espírito a apenas alguns talentos.
Se você tiver mesmo a Musa ao seu lado, coisa bastante rara hoje em dia, você vai também de algum modo encontrar o grafite que é um notável mestre em preencher de negro os vastos campos vestidos da mais branca neve de celulose.
Helenística mínima (1985)
Os gregos passaram do pensamento mítico para o pensamento racional. A ideia de harmonia está presente também na arte e na política. Do ponto de vista institucional, os gregos não pensavam na unidade territorial. O conceito de escravo foi construído sob um princípio sociopolítico, ou seja, o escravo podia até obter posses mas não podia participar da vida pública. O símbolo da coruja foi cunhado na moeda de Corinto. “Meteco” era o nome dado aos estrangeiros. Os arqueus e os dórios foram povos gregos. A Ilíada e a Odisseia são poemas épicos escritos na Idade do Bronze. Com o conceito de cidade-Estado, os gregos pensaram depois a democracia e a cidadania. Na língua portuguesa, há muitos prefixos e sufixos gregos. Acrópole era o nome da cidade alta, na qual eram realizados os cultos religiosos e a vigilância. Ágora, porém, era a cidade baixa, o espaço público da convivência e dos negócios.
Etc.
Nessas aulas, que eu amava com fervor, o mundo clássico ia sendo desfiado aos poucos pelo professor Faria, que tinha um bigode tão grande quanto o de Nietzsche.
Divã (1985)
Pensando de modo pouco convencional, o divã é o lugar onde os desejos encontram sobre o forro macio do móvel o seu pouso repleto de turbulências, onde o inconsciente fica à deriva (o inconsciente não está sempre à deriva?) e as paixões obsessivas começam a boiar ̶ lugar, por fim, que expressa as neuroses sem cura e cujos interditos podem até permitir a passagem de algumas dores psíquicas ou camuflá-las ou ampliá-las em direção a uma crise que só se realiza no plano do imaginário.
O divã é também o prazer narcísico?
Em certo cinema e em certa literatura, o divã é compreendido quase sempre como um interstício. Mas ele, de fato, coloca a minha cabeça no lugar? Desentorta o que será sempre torto? Purga o sofrimento pelas culpas e fraquezas sob o abrigo do arrependimento?
A noção de “limpar a cabeça” contra as imundícies da sociedade burguesa é infrutífera porque, uma vez feita a assepsia, ocorre logo em seguida outra poluição, e assim por diante, como se a burguesia fosse eterna e nós fôssemos seres inertes diante do mal que nos cega.
Contra todas as gagueiras, lapsos e sonhos angustiantes, para usar uma metáfora demente, o divã é um escorpião louco enfiando o seu ferrão na própria cabeça.
Que riqueza de memória e linguagem. Quanta sensibilidade e homenagem a esses pais que se eternizam em você L.A.