Rótulos (1985)
Ao contrário de uma personagem de histórias em quadrinhos, que dorme quando escuta certas idiotices, eu debocho, sem medir palavras, das pessoas que têm necessidade doentia de rotular os outros segundo o que dizem ou como se vestem ou conforme o lugar onde moram, a ponto de acreditarem que o ato de classificar seja uma virtude rara.
Como se não percebessem que o ser humano é tudo aquilo que ele não reconhece em si mesmo: um feixe de contradições, um cofre onde o Bem e o Mal estão guardados, uma besta que, como em Zola, pode surgir de repente. Na minha pequena enciclopédia de bizarrices, a rotulação é outra forma de tirania fascista, pois afronta a existência do desigual.
Se rotular for mesmo uma forma de ação intelectual, que não deixa de ser também censura disfarçada, pois a diferença é simultaneamente preterida e selada, eu me oponho a esse modo de pensar, que vê o polo contrário como um inimigo abjeto a ser exterminado e sem dispor do mais elementar direito.
Desde o advento das sociedades totalitárias, é impossível às comunidades humanas reduzirem-se ao sonho utópico da uniformidade. No maoismo, se alguém ainda se lembra, os chineses vestiam roupas iguais como indicativo de que todos pensavam do mesmo modo. Ah! ah! ah! Era a piada na década de 1970.
Procurando outra fresta para pensar, a rotulação está ao lado do Pai, aquele que garante, tendo em vista a carência filial, a devoção do filho.
Bem entendido, o Pai é a instituição que dá nome aos corpos ̶ esses que são produzidos em série, como latas de ervilha numa gôndola de supermercado, para que os miseráveis não se rebelem contra os desígnios do capitalismo.
Pai biológico, pai social, pai ideológico, pai-patrão, pai de mentira ̶ são tantos os pais que é uma temeridade nomear o pior de todos: o pai bíblico.
Um título de Buñuel (1985)
Escreveu o cineasta como título de um dos seus filmes, do qual gosto muito, que foi adaptado do romance La Femme et le Pantin (1898), de Pierre Louÿs: Esse Obscuro Objeto do Desejo.
Como sabemos, esse filme, por ter caído tantas vezes diante dos nossos olhos, conta a história do desejo impossível, barrado, psicanalítico (pois há uma dificuldade intrínseca de apreendê-lo). A propósito do que o título sugere, a perplexidade e o impulso, o receio e a vocação pendular ao sofrimento são ingredientes que se misturam com sutileza e ferocidade.
O desejo é aquilo que, quando se revela por meio de um traço oblíquo ou de um tique, não recebe nome, pelo menos um que seja revelador. Eu desejo, mas não sei expressar esse desejo, diria Buñuel. Ou melhor, eu mal o conheço ̶ esse desejo que aflora nos momentos mais imprevisíveis, esse desejo que se mascara para melhor se enunciar. No interior desses conflitos, eis o paradoxo que fervilha:
“Eu sinto o quê?” ̶ pergunta o meu coração, e ele não sabe responder.
Em alguns instantes de lucidez, é fácil preenchê-lo, mas depois, durante os surtos, escapa ao controle, dirigindo-se ao vazio em que o Nada sabe de si, e, muito menos, a inquietude sem causa aparente: a vã obsessão por uma mulher cujo nome se desconhece, o roteiro complexo de um filme, o conteúdo de uma palestra, a descrição freudiana de um sonho, uma imagem que se esgarça…
O “obscuro objeto” que o título encerra foi entrevisto numa carta que recebi há algum tempo. A remetente escreveu, mas não o disse ̶ o desejo que às vezes nos reunia e nos transbordava, e, entre sussurros, nós dizíamos um para o outro o amor vindouro que depois, em pouquíssimas noites, seria reduzido a migalhas.
Como se diz nos dramas intricados: um desejo impossível, um filme de Buñuel.
Baby (1986)
Ninguém sabe como a sedução começa. Aliás, se é possível fazer conjecturas, ela talvez comece por meio de uma distração, ou seja, por intermédio de uns olhos verdes, como no bolero, “translúcidos, serenos”, que te olham, mas ainda não te veem.
Em outra descrição, num lugar público, o impulso de roçar um braço elegante talvez deva ser também considerado outra forma de sedução, se agora esses olhos verdes cruzarem o seu caminho com uma proximidade quase física.
Onde a sedução começa? Qualquer suposição a esse respeito não passa de uma tentativa trôpega de discutir conceitos de poética. A sedução, como sabemos, é inapreensível, esquiva, casual, feita de uma substância indeterminada, que só a literatura é capaz de imaginar.
Talvez, por isso, eu possa dizer que um pequeno olhar, desses que não demoram o instante de um raio, pode revelar um enunciado que se fosse dito por palavras transmitiria certamente a seguinte mensagem:
“Eu quero te seduzir, pois tu és o meu desejo, para o qual não existe remédio.”
Se não estou sendo presunçoso, esse olhar eu o absorvi ̶ e também o respondi com a mesma surpresa ̶ da mulher com quem conversei hoje, pela primeira vez, em uma reunião na casa de um amigo.
Esse olhar ̶ que fulgurava de um corpo intenso ̶ eu o guardo até agora comigo, como uma brasa acesa no peito. Vulcânico, esse olhar disse para mim, com brilho febril, o que eu queria ouvir, e que mais tarde transformar-me-ia no animal mais afortunado do mundo:
“Estou aguardando a tua ligação.”
O jogo (1989)
Sentir o Estranho como um vizinho inconveniente que se aproxima sorrateiro. Como uma espécie de predador, ele se instala ao lado, perto, dentro, próximo, urdindo uma ameaça que se cumpre aos poucos, embora não tenha, na sua estratégia deliberada, o propósito de aniquilamento.
Como não posso deixar de concordar, trata-se de uma convivência difícil ̶ esta entre dois seres tão díspares quanto complementares. Eu pergunto a esse vizinho, o meu Outro, que ameaça com tenazes brutais:
“Quem é você?”
Ele responde com a mesma pergunta, um diapasão monótono:
“Quem somos nós?”
Duas perguntas similares, um procurando esconder o outro por meio da mesma sombra. Ou, com algum terror, como pode a minha sombra esconder-se dentro de mim? Desse modo, não chegaremos nunca a um consenso. Logo, mero jogo, sem vencedor ou vencido, se é verdade que o espelho reflete sempre a mesma imagem.
Ele sorri, o meu vizinho; eu o encaro, com ânsia de obliterá-lo.
Ele execra a minha ignorância por eu não entender as regras desse meu desígnio. Como na imagem do santo imolado, ele atinge todos os meus lados com golpes ferinos, os quais ̶ reconheço ̶ são apenas para atordoar. O bastardo tem noção do alvo e um indisfarçável prazer em aplicar com método o seu sadismo.
Como se desvencilhar desse inimigo solerte e improvável? Tão doméstico e ao mesmo tempo tão inconcebível?
Esconder-se nas dobras das regras do jogo ̶ sim, e o faço todos os dias. Mas, gato com o rabo de fora da moita, onde me protejo, ele me descobre por causa desse descuido. E me ataca de novo e me atinge e me tortura com a sua fingida piedade de monge.
Apesar de tudo, como que para me lembrar do meu fantasioso sonho de perenidade, eu morro e renasço todos os dias ̶ e esta é uma das regras do jogo, que só descobri muito tarde, quando estava num lugar que, se me lembro bem, não tinha nome.
Samara (1989)
A cigana cujo nome é Samara leu, no início de uma dessas noites de abril, entre olhares circunspectos e mistério de filme C, aquilo que não está escrito nas profundezas do céu: o desejo de ser livre e não viver a tristeza dos homens desajustados. Ela não leu a minha mão, bem entendido ̶ ao contrário, ela leu a sua própria mão, que é outro modo de navegar sem remos e perscrutar o mistério humano.
E pretendia com essa leitura ampliar o brilho das estrelas que luziam no fundo do meu espírito. Ela revolvia em mim os sentimentos que, tenho certeza, gostaria que eu não os revivesse. Porque ela sabia que, apesar de combater as similitudes, eu não conseguiria vencer a ordem das latas de ervilhas. E, ao apagar a luz que vinha da estrela mais distante da galáxia, ela acendia com os seus olhos outras luzes que estavam extintas em outra imensidão do meu ser: a luz que eu próprio não queria despertar por às vezes me sentir como todos os homens, embora, numa luta inglória, eu procurasse para a minha vida outro momento: ser o homem de um tempo alegre e justo, no qual a felicidade pudesse ser equivalente à ventura que anunciam as mulheres com vozes imantadas de saber.
A noite, com o seu azul escuro, quase negro, pontilhada aqui e ali de luzes coriscantes, avançava cobrindo as casas, os prédios, as árvores, os seres vivos e as formas da cidade. A noite era zíngara, isto é, a noite tinha o movimento nômade dos ciganos: avançavam aos poucos, mas com cautela, um passo, depois outro, aguardando que o negrume os cobrisse e os escondesse.
E Samara, a cigana de abril, procurava com o seu sorriso enigmático revelar a incógnita que se escondia na textura do meu corpo: o fragmento, o não dito, o interstício, o vazio que é impossível de ser preenchido.
Um bálsamo nesses tempos sombrios. Poesia, desejo, e muito talento literário. Obrigada L. A.