Não se faz antologia da psicanálise, sob pena de cultuarmos um cadáver. A psicanálise já é o impossível, evanescente. O que temos é o resto, o que sobra de uma operação que tenta tomar o real pelo simbólico, sem esquecer o imaginário. Mesmo assim, corro o risco.
Com o risco do saber sabido, que paralisa o avanço da teoria. Justo a teoria, que era a última aposta de Freud quanto à invenção e ao futuro da psicanálise. Ele chegou a fazer pouco da clínica no fim da vida, mas aí chegou aquele moço, Jacques Lacan, que pôs a turma de novo pra pensar: “só se pode alcançar o real teorizando”.
Foi um risco calculado ter eu colocado como título “A psicanálise perde o grande teórico” naquela matéria que redigi, editei e publiquei no Caderno B do Jornal do Brasil naquele 23 de setembro de 1981. Minha querida professora Elizabeth Müller soube morder a isca, não só ela, muitos outros. Que história é essa de reduzir Lacan à teoria, como se ele não tivesse sido um grande clínico? Seu protesto vinha em plena sala de aula, em público, eu teria de me explicar.
Não me fiz de rogado, respondi algo assim como a citação que abre A Interpretação de Sonhos. Freud recorre a Virgílio para dizer a que veio: “Se não posso dobrar os Poderes Supremos, moverei as Regiões Infernais”, tradução dos versos da Eneida que aparecem no frontispício da primeira edição alemã da poderosa Traumdeutung . Mas gosto mesmo é do latim “Flectere si nequo superos, Acheronta movebo ”, e digo o porquê: posso resumir toda a trampa da minha vida numa expressão mais curta, Acheronta movebo, que me serve de guia para sair da fossa xingando em nagô como ensinaram Vinicius de Moraes e Monsueto, só que em latim, nossa língua-mãe, moçada, nada de declará-la morta, ainda é cedo enquanto falarmos neolatinas.
Deveria ser questão de segurança nacional honrar nossa língua materna, como o fez Caetano, consumindo-a em pó na sua Língua. Quando dói muito, apelo para Acheronta movebo, porque nada pior que inferno parado. Algo assim como proferir um puta que pariu diante do inelutável. De modo que puxei o título para “o teórico Jacques Lacan”, simplesmente para dar o que falar – existe coisa mais generosa, assim como deixar a desejar? Queria era que lessem a matéria que só eu tinha daquele jeitinho, entrevista guardada com MDMagno e Betty Milan, e que soltei tipo bala na agulha, texto inédito de Helio Pellegrino, entrevista inédita com Horus Vital Brazil, e também a citação de um inimigo da psicanálise, o diplomata e crítico literário José Guilherme Merquior, que diziam cooptado por Roberto Campos. Não se fala mal dos mortos, diz o preconceito.
Alguém citou Derrida que teria dito que o que não se pode falar pode-se escrever. Fake news? Sem tempo de conferir? Ah, essa falsa cultura. Mas não é pra entender que a cultura também é o que há de falso? Cadaverizada, precisa morrer, para renascer, de novo. Freud já advertira que o mal-estar é a civilização. Bom, a dica de Derrida não é de se jogar fora. Então, quando Merquior ainda vivo, Magno não se pejou de um apodo: jegueinerme, foi como ele aludiu ao nome do moço nos seus seminários, mais uma do língua preta do primeiro time da psicanálise, que hoje diz que não mais acredita no ensino de Lacan (“Lacan é um pensador terminal” ), que despreza como fracassado, depois de ter sido um dos seus cultores e transmissores dos mais excelentes e apaixonados.
Se o leitor duvida, leia, entre outros do mesmo autor, Economia Fundamental – Metamorfoses da Pulsão. Por ter dito não só que a prostituição não é a mais antiga das profissões, mas a única; que o inconsciente é capitalista (utilizando a comparação já usada por Freud para explicar a diferença entre investidor e empresário, o investimento libidinal e sua gestão por parte do ego-executivo); que o capitalismo sempre existiu e que é o único sistema existente, desde sempre e para sempre; que conscientizar as massas só se for a favor dele, Magno; que a universidade é um museu de fósseis; que a democracia é uma besteira, que é a ditadura de uma maioria; que a representação política, além de ser indébita, é falsa; que um rei aberto, liberal ou socializado, como Pedro II, era mais liberal que a república nascente “na mão daqueles milicos débeis mentais”.
Por essas e otras cositas mas, é que alguns mal-humorados o colocam à direita no espectro político. Será um erro do mau humor? A saber, porque tem horas que a extrema direita coincide com a extrema esquerda, e é quando chega a hora da porrada. Será que agora está se preparando no Brasil a hora da porrada? Perguntar não ofende. Surpreendo algo de paradoxal, uma convergência e uma quase coincidência entre antagônicas posições políticas e ideológicas de alguém como Magno e alguém como Slavoy Zizek. Não poderiam estar mais afastados no espectro. É na hora em que mandam baixar o pau que coincidem e se separam ao mesmo tempo. A diferença é saber quem deve bater em quem. Quem empunha o cabo do chicote?
Antologia do impossível é abertura do arquivo de minhas memórias, se é que possam interessar alguém. Posso garantir que foram nada interessantes para muitas pessoas, entre elas os editores da Zahar que, apesar da recomendação de Marco Antonio Coutinho Jorge, não quiseram publicar um livro que se chamaria Os barões da psicanálise. Seria uma história que começou com a publicação do artigo-reportagem de mesmo nome no Caderno B do Jornal do Brasil, dia 23 de setembro de 1980.
Continuou com a denúncia da tortura no Brasil, na série denominada “A psicanálise da tortura”, com muito gosto editada por Zuenir Ventura no Jornal do Brasil em 1986. Com que gosto a esquerda gostava de bater na psicanálise, comprometendo-a com a prática da tortura por militares e policiais. “Esquecendo-se” de que a mais radical denúncia da tortura e do comprometimento de uma certa psicanálise com as práticas criminosas do regime partiu justamente de uma “outra psicanálise”.
E a história chega a um ponto culminante com a convocação dos chamados Estados Gerais da Psicanálise a cargo de um psicanalista, René Major, e um filósofo, Jacques Derrida, em Paris, no ano 2000. Derrida afirmou no seu livro Mal de arquivo que a psicanálise é privilegiada nos recursos que possui para falar da crueldade contemporânea. Mas hoje quem se interessa por isso?
Até mesmo a Universidade Federal de Goiás, que sempre me tratou com cortesia, recusou-se a publicar o que é um documento sobre a história da psicanálise no Brasil, apesar do vibrante parecer favorável da professora Anita Resende, a quem agradeço de público. Mais uma vez, reflito sobre o poder dos editores. Uma possível saída da psicose foi apontada por Lacan: a publicação (nem que fosse a publixação). Na posição de secretário do alienado, o psicanalista Jacques Lacan ajudou sua psicótica a publicar. Ele apostava alto. Como Nise da Silveira, cá entre nós. Está documentada uma página infeliz da nossa história, momento de um curto-circuito entre a micro e a macro-história.
Microfísica do poder, saudades de Foucault, que defendia com coragem a ideia de clínica social, mesmo sem esperança sobre seus possíveis resultados. Mas “a melhor” foi mesmo a recusa de um dos filhos de Helio Pellegrino, não direi seu nome. Consultei-o a respeito de uma homenagem que eu faria à memória de seu pai, publicando na íntegra seus textos. Textos já publicados. O que foi oferecido à Federal de Goiás de graça esbarrou na cobiça do filho. Queria grana. Fez jogo duro. Papelão.
Engano meu pensar que hoje ninguém mais se interessa por isso. Quando vejo que pessoas de bem (que las hay… como las brujas…) pessoas de bem defendem golpe, tortura, pena de morte e, last but not least, escravidão pura e simples, então a porteira está aberta. Para tudo quanto é lado. Ou todos somos, ou ninguém é pessoa de bem. Parece que somos incapazes de pensar para além do bem e do mal. Apesar da lógica do tudo ou nada, de vez em quando até o obsessivo tem razão. De vez em quando. Quando a situação política na China pré-revolucionária era caótica, alguns da esquerda temiam a desordem, ao contrário de Mao tse tung, para quem a “situação era excelente”. A diferença era que havia um partido revolucionário. É discutível que ele ainda exista na China, mas no Brasil certamente não.
O que, para cada brasileiro, chegou no limite do tolerável? Se não há palavra, se não há simbólico, se não há pacto civilizatório, então a violência da guerra toma conta. Freud não tinha esperança no ser humano, mas propôs o amor (isso mesmo, o amor) como a única força capaz de derrotar Tânatos. Qual será nossa aposta? Existe ninja de esquerda? Qual, me responde Dona Zélia, minha vizinha no Méier, doce e serena criatura, do fundo dos tempos, defendendo a mais difícil posição filosófica – a do ceticismo – a respeito das querelas humanas, enquanto prepara o jantar do seu marido.
Um pouco de humor “negro”. Como diz o outro, militares deram 80 tiros num carro e “só” mataram – e pelas costas – uma única pessoa, o motorista, músico, negro. Um carro cheio de pessoas de sua família. Que competência. Qual.