[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Módulo de verão
As cigarras começaram de novo, brutas e brutas.
Nem um pouco delicadas as cigarras são.
Esguicham atarraxadas nos troncos
o vidro moído de seus peitos, todo ele
– chamado canto – cinzento-seco, garra
de pelo e arame, um áspero metal.
As cigarras têm cabeça de noiva,
as asas como véu, translúcidas.
As cigarras têm o que fazer,
têm olhos perdoáveis.
Quem não quis junto deles uma agulha?
– Filhinho meu, vem comer,
ó meu amor, vem dormir.
Que noite tão clara e quente,
ó vida tão breve e boa!
A cigarra atrela as patas
é no meu coração.
O que ela fica gritando eu não entendo,
sei que é pura esperança
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[2]
A serenata
Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão da juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
– só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?
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[3]
Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram
ele fala coisas como ‘este foi difícil’,
‘prateou no ar dando rabanadas’
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
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[4]
Genesíaco
Um homem na campina olhava o céu. As estrelas
pareciam aumentadas, de tamanho brilho.
Estrela, ó estrela, estrelas,
ele suplicou como se injuriasse.
Os que alimentavam o fogo
aproximaram-se admirados:
nós também queremos, repeti para nós.
Ó noite de mil olhos, reluzente.
Os vocativos
são o princípio de toda poesia.
Ó homem, ó filho meu,
convoca-me a voz do amor,
até que eu responda
ó Deus, ó Pai.
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Senha
Eu sou uma mulher sem nenhum mel
eu não tenho um colírio nem um chá
tento a rosa de seda sobre o muro
minha raiz comendo esterco e chão.
Quero a macia flor desabrochada
irado polvo cego é meu carinho.
Eu quero ser chamada rosa e flor
eu vou gerar um cacto sem espinho.
Perfil
Adélia Luzia Prado de Freitas nasceu em 13 de dezembro de 1935 na cidade de Divinópolis (MG), onde vive até hoje. Concluiu o magistério e tornou-se professora, atividade que exerceria durante 24 anos. Em 1973, graduou-se em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis. Escreveu peças de teatro, atuou como atriz e dirigiu encenações, como O auto da compadecida, de Ariano Suassuna. Entre 1983 e 1988, tornou-se chefe da Divisão Cultural da Prefeitura de sua cidade. Autora de uma escrita original, escreveu os seguintes livros de poemas: Bagagem (1976), O coração disparado (1978), Terra de Santa Cruz (1981), O pelicano (1987), A faca no peito (1988), Poesia reunida (1991), Chorinho doce (1995), Oráculos de maio (1999), Vida doida (2006), A duração do dia (2010), Reunião de poesia (2013), Miserere (2013). Em prosa, publicou os seguintes títulos: Solte os cachorros (1979), Cacos para um vitral (1980), Os componentes da banda (1984), O homem da mão seca (1994), Manuscritos de Felipa (1999), Prosa reunida (1999), Filandras (2001), Quero minha mãe (2005), Quando eu era pequena (2006), Carmela vai à escola (2011). Em parceria publicou os títulos que seguem: A lapinha de Jesus, com Lázaro Barreto (1969), e O simbólico e o diabólico, com Waldecy Tenório, Leonardo Boff e outros, (1999). Em posfácio à sua Poesia reunida (Record, 2015), o professor Augusto Massi, avaliando a sua obra poética, destaca “movimentos líricos fundamentais”, entre os quais “a pulsão criativa”, “a passagem da potência ao ato”, “a esfera abrupta da oralidade”. Além desses aspectos, sua poesia é marcada pela mística, uma religiosidade que se deve à sua formação católica, com influência franciscana.