Durante muitas décadas, onde havia um violão havia alguém cantando Andança. E era impossível não trazer à memória os versos da canção de Paulinho Tapajós, Danilo Caymmi e Edmundo Souto, entoados em uma voz grave e macia. A voz de Beth Carvalho. A primeira vez que ela imortalizou essa música foi no Festival Internacional da Canção de 1968, dividindo a interpretação com o grupo Golden Boys. Nascia uma estrela que, já consagrada, reeditaria essa parceria no LP No Pagode, de 1979.
A perda de Beth Carvalho, aos 72 anos de idade, significa a ausência de uma personalidade fundamental para entender a música brasileira nos últimos 50 anos. Afinal, era a Madrinha do Samba, título que não lhe foi conferido injustamente ou apenas como uma louvação a mais. Ela foi, de fato, a madrinha deste gênero musical em vários sentidos, popularizando clássicos, descobrindo talentos e resgatando verdadeiros ícones que, por um motivo ou outro, estavam esquecidos.
“Subi, mais de 1.800 colinas. Não vi nem a sombra de quem eu desejo encontrar. Oh Deus eu preciso encontrar meu amor, ôôô Para matar a saudade que quer me matar. 1.800 Colinas (Gracia do Salgueiro)”
No final dos anos 1960, Beth Carvalho não poderia mesmo escapar da influência da Bossa Nova, ainda bastante forte no cenário musical. Naquele momento, aproximou-se de nomes maiúsculos que também estavam começando. Veio a amizade com Maria Bethânia, que chegara ao Rio de Janeiro vinda da Bahia para substituir Nara Leão no espetáculo Opinião. Depois vieram os contatos com Caetano Veloso, Chico Buarque e, por fim, encontrou sua turma nesse trânsito entre MPB e samba de velhas guardas.
Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção, querida
De cada amor, tu herdarás só o cinismo
Quando notares, estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés.
O Mundo é Um Moinho (Cartola)
Em uma entrevista ao canal Globo News, a cantora relatou que no início ficou um pouco dividida, mas depois decidiu-se por uma vertente mais próxima do samba partido alto, aquela poesia que é feita nos morros cariocas e desce para avenidas e rodas musicais, palcos nobres, casas de shows de prestígio. Ela ajudou a fazer essa ponte, andando por favelas e barracões de escolas de samba, reconhecendo quem tinha futuro, procurando aqueles que andavam sumidos.
“Não pense que meu coração é de papel Não brinque com meu interior Camarão que dorme a onda leva Hoje é dia da caça, amanhã do caçador Camarão que Dorme A Onda Leva (Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e Beto Sem Braço)”
Foi assim que ela se encontrou com Nelson Cavaquinho e, na cara e na coragem, sentou-se ao seu lado com um violão em punho em um bar da boêmia Lapa e começou a interpretar seu repertório. O veterano compositor de A Flor e O Espinho nunca mais a largou e lhe deu passe livre para o Morro da Mangueira e sua Estação Primeira. Afinal, ninguém cantou Folhas Secas, caídas de uma Mangueira, como Beth Carvalho. Por isso também ela era um dos emblemas da Verde Rosa.
Queixo-me às rosas,
Mas que bobagem,
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti
Devias vir para ver os meus olhos tristonhos
E quem sabe sonhavas meus sonhos, por fim.
As Rosas Não Falam (Cartola)
E foi na Mangueira que ela recolocou em seu devido lugar o gênio Cartola. Depois de dificuldades na carreira, o compositor havia saído de cena e com mais de 60 anos estava no ostracismo, trabalhando como lavador de carro e garçom. Mas seu violão não havia se aposentado e Beth Carvalho sabia disso. Chegou ao barracão onde ele morava com a esposa Dona Zica e perguntou: “Cartola, tem música nova?”. Tinha várias e ela pôde escolher qual gravaria. Optou por As Rosas Não Falam. Certeira!
Nos anos posteriores, Beth continuou a praticar a arte de farejar o que havia de melhor no samba carioca. Deparou-se com uma roda de samba, no bairro de Ramos, debaixo de uma tamarineira, onde um grupo estava levando uma música da melhor qualidade. Era o Fundo de Quintal. Ela chegou, se sentou e se integrou, passando a ser a voz de um número enorme de talentos que iam até ali para mostrar e entoar suas composições. Virou madrinha do Cacique de Ramos, e do samba.
“Quem te agradece por ser tão bem assistido E ter sempre conseguido tantas glórias a seus pés Quem sobe o morro carregando lata d’água Solto o riso, esquece a mágoa Faz do samba brincadeira. São José de Madureira (Zeca Pagodinho e Beto Sem Braço)”
Beth foi a primeira a interpretar canções de nomes como Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Almir Guineto, Sombrinha, Jorge Aragão. Todos lhe pediam a bênção em todas as oportunidades. Não era para menos. Ela foi um divisor de águas, foi um marco essencial para elevar o samba a um novo patamar, trabalhando duro ao lado de outros nomes igualmente importantes, como Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Alcione, Clara Nunes, Dona Ivone Lara. Beth Carvalho estava nessa comissão de frente.
Ô, coisinha tão bonitinha do pai.
Você vale ouro, todo meu tesouro
Tão formosa da cabeça aos pés.
Foi lhe amando, lhe adorando
Digo mais uma vez
Agradeço a Deus porque lhe fez!
Coisinha do Pai (Jorge Aragão)
O interessante é que mesmo sendo o símbolo de um estilo, ela nunca se restringiu a um nicho. Cantava canções de louvor a orixás da Bahia ao lado das amigas Bethânia e Gal Costa. É dela uma interpretação arrebatadora de Meu Guri, de Chico Buarque. Também gostava de revisitar Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Um jeito vibrante de interpretar que chegou a Marte, quando sua voz cantando Coisinha do Pai, de Jorge Aragão, foi usada para despertar um robô da Nasa enviado ao Planeta Vermelho.
“Chora, não vou ligar. Chegou a hora, vais me pagar. Pode chorar, pode chorar. É, o teu castigo, brigou comigo Sem ter porque Eu vou festejar, o teu sofrer, o teu penar. Você pagou com traição A quem sempre lhe deu a mão. Vou Festejar (Jorge Aragão, Dida e Neoci Dias)”
Interplanetária, como ela mesma gostava de dizer que passara a ser, Beth Carvalho fazia festa até no hospital. Certa vez ficou um ano internada com problemas na coluna e fez de seu quarto um ponto de encontro de amigos, improvisando rodas de samba. Exímia tocadora de cavaquinho, dona de um ritmo único, Beth Carvalho era conhecida por sua generosidade pessoal, artística. Pouco antes de morrer, planejava fazer uma homenagem ao amigo adoentado Arlindo Cruz. Uma vez madrinha, sempre madrinha.