[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
No caminho da Gávea
O táxi para na esquina e meu
coração está calcinado.
A paisagem é impecável no seu
espetáculo simétrico e lento. O sol cochila.
Do outro lado da rua e de mim
o mar deságua em si mesmo.
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[2]
Hora do recreio
O coração em frangalhos o poeta é
levado a optar entre dois amores.
as duas não pode ser pois ambas não deixariam
uma só é impossível pois há os olhos da outra
e nenhuma é um verso que não é deste poema
Por hoje basta. Amanhã volto a pensar neste
problema.
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Primeiras impressões
jamais quis tão pouco nesta vida
ouvir de uma certa boca a palavra adeus
o navio deixa o cais e uma negra foice
mergulha e novamente mergulha e novamente
sons esparsos martelando tímpanos
que são cerejas e gorjeios da passarada
cai a noite jamais quis tão pouco nesta vida
ouvir numa certa hora a palavra adeus
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[4]
Reencontro
Percorres a casa e observas: o corredor é longo,
quantos quartos, e eu navego teus olhos
escavando
nossos corpos noturnos mapeados.
Pouco a pouco as formas endurecem e nos
vemos
por fim pacificados: não sou quem pensas não és
quem penso,
amargos nos deixamos tão carentes
desta fome por tanto acumulada.
Chegaste agora quando a vida é escombros
e nossas
outras imagens
se entrelaçam mas não basta, e nossos corpos
se esfriam germinados.
Por entre lençóis e amoras por entre veios
e gomos cavamos nosso vazio e ali
nos interpomos:
do que não somos saudosos
sobreviventes do que fomos.
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[5]
O pássaro incubado
O pássaro preso na gaiola
é um geógrafo quase alheio:
Prefere, do mundo que o cerca,
não as arestas: o meio.
É isso que o diferencia
dos outros pássaros: ser duro.
Habita cada momento
que existe dentro do cubo.
Ao pássaro preso se nega
a condição acabado.
Não é um pássaro que voa:
É um pássaro incubado.
Falta a ele: não espaços
nem horizontes nem casas:
Sobra-lhe uma roupa enjeitada
que lhe decepa as asas.
O pássaro preso é um pássaro
recortado em seu domínio:
Não é dono de onde mora,
nem mora onde é inquilino.
Perfil
Cacaso (Antônio Carlos de Brito) nasceu no dia 13 de março de 1944 em Uberaba-MG e morreu em 27 de dezembro de 1987 no Rio de Janeiro. Em 1955, transferiu-se com a família para o litoral fluminense. No período de 1964 a 1969, cursou Filosofia na UFRJ. Entre 1965 e 1975, lecionou Teoria Literária na PUC-RJ. A partir de 1968, colaborou com os jornais Opinião e Movimento, escrevendo ensaios sobre poesia e refletindo sobre os problemas de sua contemporaneidade. Participou do movimento estudantil contra a ditadura militar. Com Francisco Alvim, Roberto Schwarz, Chacal, entre outros, nos anos 1974 e 1975, fez parte dos grupos literários Frenesi e Vida de Artista, cuja característica marcante era o lançamento de poemas em revistas mimeografadas. A produção literária desses grupos ficou conhecida como Poesia Marginal ou Geração Mimeógrafo, importante movimento de contracultura que se opunha à repressão política e à censura cultural. Além de professor universitário, poeta, ensaísta, foi autor de letras de canções, tendo sido parceiro de Sueli Costa, Toquinho, Tom Jobim, Edu Lobo, Francis Hime, Nelson Ângelo, Novelli, Djavan, Toninho Horta, entre outros. Como poeta, escreveu os seguintes livros: A palavra cerzida (1967), Grupo escolar (1974), Beijo na boca (1975), Segunda classe (1975, em parceria com Luís Olavo Fontes), Na corda bamba (1978) e Mar de mineiro (1982). A ironia, o sarcasmo, o deboche e a coloquialidade são elementos que podem ser identificados em sua poesia, ao lado de forte influência de Manuel Bandeira. Em 2016, José Joaquim Salles e Ph Souza realizaram o documentário Cacaso na corda bamba, com duração de 88’, que explora aspectos multifacetados de sua trajetória artística.