Em França, as últimas décadas do século XIX foram sobremaneira importantes para o estabelecimento das características gerais e generalizadoras da produção de literatura no restante do Ocidente. A lembrança das escolas literárias de então, pois, é oportuna: simbolismo, parnasianismo, realismo e naturalismo encontram raízes profundas em terras francesas, e deste epicentro difundiram-se e foram absorvidas por outras culturas.
Dessa maneira, o esforço de sopesar a influência de nomes consagrados dos supracitados movimentos (verbi gratia, Charles Baudelaire (1821-1867), simbolista; Gustave Flaubert (1821-1880), realista; e Émile Zola (1840-1902), naturalista) é menor, evidentemente, do que a tarefa de conhecer a importância dos escritores do dia a dia parisiense, imersos na atmosfera dos flâneurs e do decadentismo, que viveram junto aos grandes nomes, entanto não foram agraciados pela memória geral, e ajudaram a edificar um momento cultural destarte efervescente.
Maurice Bouchor, nascido a 16 de novembro de 1855, era tido em alta conta pelos seus pares, e pouco dele – praticamente nada, em verdade – está disponível em português. Seu début, Les Chansons Joyeuses (1874), foi bem recebido pela crítica. A seguir, o poeta lança Poèmes de l’Amour et de la Mer (1876), Faust Moderne (1878), Contes Parisiens (1880), L’Aurore e Symboles (1888). É possível perceber, no decurso da bibliografia e como grandes caracteres de estilo do autor, a mescla de elementos do romantismo tardio, tais como a idealização feminina, o sentimento de spleen, e do simbolismo em sua época áurea, a exemplo da indeterminação descritiva e a superassociação de sentidos, ao que aponta, inclusive, os títulos de suas derradeiras obras, em que tudo caminha ao prevalecimento de certo misticismo.
À guisa de complemento biográfico, importa dizer que Bouchor se aventurou, com sucesso, a escrever peças para um teatro de marionetes, o Petit Théâtre, e mesmo confeccionou algumas das bonecas e interpretou certos papéis. A essa altura, o poeta realizou diversas viagens pela Europa, pelo norte da África e pelos Estados Unidos, empreendendo pesquisas a respeito de canções populares, filosofia e religião. Ele ainda se notabilizou pela militância socialista e laicista, falecendo em 17 de janeiro de 1929.
Dedicado a Maurice, Paul Verlaine (1844-1896) escreveu um soneto, publicado em 1889 na revista Le Chat Noir e, no ano seguinte, incluso no livro Dédicaces, em que diz que Bouchor é como Saint-Jean “Bouche d’Or”, “boca de ouro”, trocadilho elogioso à eloquência de um “soldado de riso franco” (“Il s’appelle Maurice ainsi que ce soldat/ Et se nomme Bouchor comme saint Bouche d’Or,/ Soldat de rire franc, saint sinon point encor,/ Du moins religieux d’esprit — sinon d’état”, diz o primeiro quarteto do poema), dentre outras mostras de grande consideração. A correspondência entre os dois poetas é digna de nota, bem como as cartas trocadas entre Maurice e Flaubert, que também denotam boa relação.
Em 1889, Bouchor foi nomeado chevalier da Légion d’Honneur. O banquete de comemoração reuniu notáveis personalidades artísticas daquele período, verdadeiros ícones em suas áreas de atuação, tais como os pintores Auguste Rodin (1840-1917) e Claude Monet (1840-1926), os poetas Stéphane Mallarmé (1842-1898) e Sully-Prudhomme (1839-1907) e o escritor Anatole France (1844-1924), para citação de alguns.
De retorno à tese, então, é perceptível a estada de Maurice Bouchor entre os grandes de sua época, não restringindo a afirmação apenas ao panteão literato. Um perfil do poeta, disponível na internet, parece explicar o aparente esquecimento geral em relação à obra de Bouchor: “Son oeuvre poétique a certainement souffert d’avoir longtemps servi de catéchisme à l’école laïque et obligatoire, si bien que ce poète à dictées et à recitations fleure encore aujourd’hui le désuet” (Sua obra poética certamente sofreu por ter servido por muito tempo como catecismo à escola laica e obrigatória, de tal forma que este poeta de ditados e recitações soa atualmente como datado).
Mas, em seguida, há uma feliz ponderação: “C’est là une injustice, car, à la lecture, nombre de poèmes de Bouchor résistent aux morsures du temps. Des compositeurs, tel Ernest Chausson, ne s’y trompèrent pas qui furent inspirés par les vers de ce poète élégiaque” (Isso é uma injustiça, porque, quando lidos, numerosos poemas de Bouchor resistem à ação do tempo. Compositores como Ernest Chausson não se enganaram quando foram inspirados pelos versos desse poeta elegíaco).
Com efeito, o francês Ernest Chausson (1855-1899), partícipe da fase romântica da música erudita, compôs sobre textos de inúmeros poetas de sua época e anteriores a ela, a exemplo de trabalhos realizados em torno de obras de Honoré de Balzac (1799-1850) (opus 11), Alfred de Musset (1810-1857) (op. 4), Théophile Gautier (1811-1872) (op. 2) e Paul Verlaine (op. 13), dentre muitos outros.
Cumpre dizer, no entanto, que Maurice Bouchor foi provavelmente seu maior parceiro. A primeira intersecção entre a obra dos dois artistas se deu com Quatre mélodies (op. 8), em que quatro poemas de Bouchor, Nocturne, Amour d’antan, Printemps triste e Nous souvenirs servem de “libretto” para Chausson e suas melodias. Há, posteriormente, uma versão enxuta de The Tempest, de William Shakespeare (1564-1616), adaptada por Bouchor e musicada por Chausson (op. 18).
Entretanto, a obra mais conhecida a reunir os talentos de ambos foi Poème de l’Amour et de la Mer (op. 19), baseada, evidentemente, em poemas retirados do segundo livro de Maurice. A composição de Ernest se deu em tempo prolongado, a durar cerca de dez anos, entre 1882 e 1892. Confira a seguir, em tradução inédita, isto é, pela primeira vez em português, o texto integral de Poème de l’Amour et de la Mer.
Poema do amor e do mar (Maurice Bouchor)
A flor das águas
I
O ar cheio está de um odor raro de lilases,
Que, florindo nas paredes do topo às bases,
Embalsa os cabelos das moças.
O mar ao grande sol vai se incendiar,
E, sobre a areia fina que elas vêm beijar,
Onda deslumbrante faz forças.
Ó céu que de seus olhos tomar deve a cor,
Brisa que cantar vai aos lilases em flor
Para ela sair toda aromada,
Riachos a molhar seu vestido, ó caminhos
Verdes que tremem abaixo de seus pezinhos,
Deixai-me ver a minha amada!
II
E meu coração nesta manhã de verão
Despertou; por uma bela moça praiana
Lançando sobre mim seus olhos em clarão
E me sorrindo assim, selvagem e lhana.
Tu, que transfiguraste amor e juventude,
Tu como alma das coisas todas a mim posas;
Meu coração voou a ti, que prisão p’ra ele urdes,
E do céu aberto sobre nós choveram rosas.
III
Que som lamentoso e selvagem
Soará na hora do adeus!
O mar rola pela paisagem,
Zombeteiro, e pouco se deu
Conta que é hora do adeus.
De plena asa, aves têm voado
Sobre o abismo quase jocoso;
Ao sol o mar é verdeado,
E eu sangro mui silencioso
A observar o céu tão brilhoso.
Eu sangro a observar minha vida
Que se perde junto às ondas;
Minha alma gêmea foi perdida
E o clamor profundo das ondas
Meu pranto e meus soluços sonda.
Poème de l’amour et de la mer (Maurice
Bouchor)
La fleur des eaux
I
L’air est plein d’une odeur exquise de lilas
Qui, fleurissant du haut des murs jusqu’au bas,
Embaument les cheveux des femmes.
La mer au grand soleil va toute s’embraser,
Et sur le sable fin qu’elles viennent baiser
Roulent d’éblouissantes lames.
O ciel qui de ses yeux dois porter la couleur,
Brise qui vas chanter dans les lilas en fleur
Pour en sortir toute embaumée,
Ruisseaux qui mouillerez sa robe, o verts sentiers,
Vous qui tressaillerez sous ses chers petits pieds,
Faites-moi voir ma bien-aimée!
II
Et mon coeur s’est levé par ce matin d’été;
Car une belle enfant était sur le rivage,
Laissant errer sur moi des yeux pleins de clarté,
Et qui me souriait un air tendre et sauvage.
Toi que transfiguraient la jeunesse et l’amour,
Tu m’apparus alors comme l’âme des choses;
Mon coeur vola vers toi, tu le pris sans retour,
Et du ciel entr’ouvert pleuvaient sur nous roses.
III
Quel son lamentable et sauvage
Va sonner l’heure de l’adieu!
La mer roule sur le rivage,
Moqueuse, et se souciant peu
Que se soit l’heure de l’adieu.
Des oiseaux passent, l’aile ouverte,
Sur l’abîme presque joyeux;
Au grand soleil la mer est verte,
Et je saigne silencieux
En regardant briller les cieux.
Je saigne en regardant ma vie
Qui va s’éloigner sur les flots;
Mon âme unique m’est ravie
Et la sombre clameur des flots
Couvre le bruit de mes sanglots.
Ouça a interpretação de Susan Graham de Poème de l’Amour et de la Mer (Bouchor/Chausson).