Logo nas primeiras páginas de Conversa na Catedral, um dos primeiros romances do escritor peruano Mario Vargas Llosa, o protagonista da história, Santiago Zavala, o Zavalita, se indaga sobre qual momento da sua vida havia sido determinante para que ele se enredasse em uma armadilha de fracasso pessoal da qual não conseguia sair. E nem mesmo se sentia disposto a tentar fazê-lo.
Fora quando se decidiu a seguir uma carreira nada promissora de jornalista? Ou quando resolvera casar-se, sem muito entusiasmo, com Ana, uma enfermeira sem muitos atrativos? Ou o selo da derrota já havia sido impresso nele desde o nascimento, no seio de uma família burguesa junto à qual sempre se sentira um estranho e de cujos valores nunca compartilhou?
Nessas perguntas que faz a si próprio de forma direta ou que são sugeridas ao leitor ao longo da trama, o personagem também percebe algo de alcance muito mais geral. Sua tragédia não é apenas individual. Ela é, antes de mais nada, a expressão particular da tragédia de um povo.
Em síntese, é sobre esse tema que Conversa na Catedral trata: o drama coletivo de um país sufocado pelo autoritarismo, pela violência institucionalizada, por uma cultura de servilismo e corrupção que privilegia a mediocridade e massacra o talento.
O cenário desse romance de tintas autobiográficas é o Peru sob a ditadura do general Manuel A. Odría, que governou o país com mão de ferro no período de 1948 a 1956. Em uma mesa do bar Catedral, em Lima, em tempos distintos, o repórter Zavalita ora conversa com um ex-motorista da sua família, Ambrosio, ora com Carlitos, um colega de redação.
Um grande painel da política e da sociedade peruanas da época surge desses diálogos, entrecortados, por sua vez, pelas conversas de outras personagens. Influenciado pelo escritor norte-americano William Faulkner, Vargas Llosa não apresenta uma narrativa linear, mas fragmentada, intercalando personagens e episódios e embarallhando as fronteiras temporais.
Na ampla galeria de personagens que desfilam pelo romance, as mais emblemáticas, além de Zavalita, são Cayo Bermudez, Dom Fermin e o já citado Ambrosio. O sinistro Cayo encarna a parte mais brutal da ditadura, é o encarregado do serviço sujo. Responsável pela segurança nacional, controla uma rede de agentes que prende, tortura e mata qualquer pessoa minimamente suspeita de oposição ao regime. Agindo nas sombras, ele concentra um enorme poder, desautorizando ministros, constrangendo deputados e extorquindo empresários.
Porém, se inspira temor, Cayo está longe de despertar uma atitude de respeito junto à elite que sustenta o regime. Para esta, ele será sempre o mestiço arrivista que momentaneamente ocupa uma posição de mando e que será devidamente descartado quando não for mais útil aos seus interesses.
Dom Fermin, por sua vez, simboliza a classe dominante do pais. Empresário, casado com uma dondoca esnobe e pai de Zavalita, ele representa a mentalidade de uma elite que, apesar da fachada cosmopolita, das boas maneiras à mesa e das viagens à Europa, é diretamente responsável pelo atraso do país. Em nome da proteção aos seus negócios particulares, Dom Fermin e seus pares dão sustentação ao regime que impede qualquer tentativa de tornar o Peru uma nação democrática e civilizada.
Ambrosio, por sua vez, é o homem do povo que, concentrado na sua sobrevivência, deixa-se reduzir a uma condição de extremo conformismo e servilismo, a ponto de abrir mão da própria dignidade. Submete-se a qualquer tarefa, seja ela a de espancar manifestantes que se insurgem contra o governo, infiltrando-se como agitador a serviço do regime nos protestos populares, seja a de se sujeitar ao apetite sexual do patrão. Sempre pronto a obedecer às ordens dos seus superiores, é incapaz de enxergar a exploração a que é submetido.
O grande trunfo do romance é mostrar que a ditadura não se limita a sufocar a liberdade política e que a violência decorrente dela vai muito além da que atinge os corpos e o direito de ir e vir de seus opositores. O Peru de Conversa na Catedral é um país em que a cultura do autoritarismo, e da subserviência que é o seu corolário, está presente em todos os aspectos da vida em sociedade e contamina as relações entre pais e filhos, entre patrões e empregados, entre homens e mulheres.
Esse livro que Vargas Lhosa, hoje um autor afinado com a cartilha do neoliberalismo, lançou há 50 anos, em 1969, permanece como uma leitura atual e necessária para entender este novo período de trevas em que a América Latina – e particularmente, nós, brasileiros – estamos mergulhados.