Uma breve avaliação dos modos historicamente desenvolvidos pelo romance para representação do outro permite perceber que há uma espécie de retórica da alteridade: o personagem Sexta-feira d’As Aventuras de Robinson Crusoé erige-se no silêncio da barbárie, ele não tem voz própria nem linguagem; os personagens caipiras, os matutos, os jagunços da literatura regionalista ordinariamente apresentam falas pitorescas molduradas por um narrador culto, como podemos ler em Tropas e Boiadas, de Hugo de Carvalho Ramos; a língua de Riobaldo é uma conquista que merece ser continuamente celebrada; mas foi no Desmundo que eu vi, quer dizer, que eu li pela primeira vez uma personagem de outra língua, com quem a narradora trava relações, manter a representação de sua fala no código originário.
Tudo bem, o livro já tem mais de 20 anos, isso aqui não é uma resenha, mas eu vou fazer um pequeno resumo pra situar os leitores desavisados. Ou porque eu só sei escrever assim. O romance de Ana Miranda conta a história de um grupo de órfãs portuguesas mandado ao Brasil com a missão de cristianizar e povoar a colônia. A prática era difundida naquele tempo, como pode ser constatado na epígrafe do livro que nos mostra um trecho de uma carta real de 1552 de Manoel de Nóbrega a D. João, solicitando o envio de mulheres portuguesas para se casarem com os colonizadores no Brasil. Não se tratava obviamente de uma viagem voluntária.
A protagonista do romance Desmundo, de Ana Miranda, é uma dessas muitas órfãs portuguesas enviadas ao Brasil. Pelo ponto de vista de Oribela, e mais especialmente por seu discurso, por sua oralidade costurada de outras falas, percebemos seus anseios, sua busca de identidade e seus medos. Estamos, assim, diante de um (des) mundo, estranho, desconfortável, não de um mundo inteiro e conhecido.
Oribela conta-nos sua história em um momento em que tudo já aconteceu, como acontece em Coração das Trevas, de Joseph Conrad, talvez o mais importante romance do imperialismo inglês. A narrativa é, a todo momento, interrompida para ser preenchida por lembranças anteriores àquele trecho da história, como sua vida em Portugal. É através dessas lembranças que reconstruímos o espaço da metrópole, onde ela nasceu e viveu até o momento da partida à colônia.
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Um amigo querido, especialista em Ana Miranda[1], já me disse como o Brasil, no período colonial, foi representado na Europa como um símile ou mesmo o próprio Paraíso Terrestre, ou seja, um lugar de delícias, abundâncias e sinônimo de felicidades. Este é o Brasil que Oribela tem em mente quando vem para o Novo Mundo e o objetivo da viagem é casar-se e ser feliz nesse suposto Paraíso que, num primeiro momento, a encanta por seu clima agradável, natureza abundante e rica em belezas animais e vegetais.
Outra estudiosa dos romances da Ana Miranda, Cláudia Espíndola Gomes, avisa que “desmundo” é uma palavra não dicionarizada, uma criação lexical. Difícil mesmo imaginar outra palavra para dar conta de expressar a percepção de Oribela do novo mundo diante de seus olhos. Tudo é “des”. Seu destino é um “desrumo”, o local um: “despejado lugar”. O Brasil é dito como “terras desabafadas”, “desventura” etc.
É nítido que Oribela purga na nova terra, a sua voz busca compreender, a partir desta língua, o desmundo em que se encontra. Há momentos em que, para compreendê-lo, parecem faltar palavras. É necessário entender a vida, “uma rede de tristuras tenebrosas”. O título coroa a história da barbárie, que já não é marca definidora da terra e do nativo brasileiros, mas característica do modo como os europeus colonizadores se relacionaram com todos os “outros” à sua volta.
Ao desembarcar na nova terra, Oribela se descreve como uma mercadoria, jogada no porto diante do olhar cobiçoso dos homens portugueses: “(…) os homens seus olhos lançavam, fôramos cargas de azêmola, boceta de marmelada, alguidar de mel sendo eles pontas de arnelas, canas agudas, flechas de arcos, espadas de pau tostado, lanças de arremesso, ferrões, açoites, feros animais, uma cutilada, uma estocada, tomando a cosso para nos possuir, o que lhes nascia de sua cobiça”.
A relação homem/mulher é simbolizada em sua fala por todo um conjunto semântico que tenta abarcar a contundência fálica da ação masculina, ostensivamente agressiva, composta de “pontas”, “flechas”, “espadas”, “lanças”, “açoites”, “cutiladas”, “estocadas”.
Desmundo se mostra, assim, sob a perspectiva da experiência feminina, como uma espécie de “contravisão do paraíso”, que desconstrói, através das experiências de violência, desamparo e desigualdade narradas por Oribela, a visão paradisíaca do Novo Mundo, matéria farta de relatos de cronistas da época, bem como de estudos posteriores da cultura brasileira. O desmundo, portanto, é a outra face do paraíso americano, a que exclui boa parte daqueles e daquelas a quem supostamente acolhe.
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O título do livro repete-se na sexta parte, a qual narra o encontro e a convivência de Oribela com Temericô.
Temericô, a nativa, e Ximeno, o mouro, constituem pequenos e curtos momentos de repouso para Oribela. São as personagens que, como Oribela, encontram-se presas na teia da dominação – caso da indígena Temericô –, ou totalmente periféricas a qualquer exercício de poder, como o mouro Ximeno. Com essas duas figuras, a protagonista vai tecer uma outra teia/texto, avessa ao domínio e aos jogos dos poderosos, uma rede de identidade e solidariedade. Assim, o neologismo “desmundo” ganha um sentido antitético dentro do romance: a contravisão do paraíso possui também seu oásis.
Com Temericô, Oribela estabelece uma profunda aliança, baseada em trocas de pequenas ninharias, histórias, lembranças, palavras, e desse modo ela vivencia, pela primeira vez, sua condição de mulher como experiência prazerosa. Na comunhão vivida com alguém que lhe é a princípio profundamente desigual, a partir de todas as distâncias impostas pela língua, pela cultura, pela religião, Oribela se descobre vivendo a cumplicidade de iguais:
Aprendi a me desnudar, no quarto, após o banho, que havia um frescor sobre a pele e se entranhando nela, uma luva de vento, um véu de seda fria, que a roupagem abafava e incendiava. E ria ela. E ria. Bom era viver numa casa sem homem a ordenar.
Ao se despir de suas pesadas roupas europeias, a personagem corporifica a transformação que se opera em sua identidade, a partir da aliança estabelecida com Temericô. Não por acaso, o capítulo que trata desta amizade se intitula “Desmundo”.
E aqui o desmundo não é mais violência e humilhação, não se associa mais tão somente à barbárie de uma civilização construída a partir da violência e do sangue, mas é indício de uma outra ordem, o avesso da civilização, a contraface da modernidade europeia, simbolizada pela casa sem homem a ordenar, onde as mulheres, branca e indígena, acham bom viver. Laços horizontais se estendem, enredando a partir de uma outra lógica, não vertical, aquelas que se encontram nas margens da ordem colonial.
Pela narração em primeira pessoa de Oribela, a voz e a língua indígena feminina ganham espaço, ganham densidade, ganham o corpo da narradora:
As plantas não têm alma, as mulheres não têm barva, os passarinhos não têm leite, abá supé-pe oro-ikó-né? Muitas mais coisas ensinou a natural, de sua fala, kûarasy sem’îanondé, xe-mo-mbak-i, que dizia, Antes do sol nascer ele me acordou, e xe r-ausu’-poir-eym-i, que dizia, Não deixou de me amar e outra coisa, a-î-ty’-rung-soó, que dizia, Pus acompanhamento à carne, e mais, a-nhe-embé-suú, que queria dizer Mordo os meus beiços, e mais, quando secou a água do rio, era t-y-pab e batia com a palma da mão e dizia, petek e se bebia água dizia, a-y-ú e furava os olhos de seu passarinho e dizia, doinha Oibeinha, a-s-esá-kutk xe r-e-imbaba gûyrá. (…) E muito mais coisas aprendi a dizer. Está na hora de dormir? Está fingindo que dorme? A árvore estalou. Faz frio, faz calor, faz lua, chove e um dia ela disse, pe-î-tenhé pe-îabap-a, que era, Fugiste à toa, sem necessidade. Que nunca se podia fugir de nada que estava dentro de nós, doinha Oibeinha, dissesse, ai virgem sagrada e eu a ensinava a cantar.
Aqui impõe-se a pergunta: que tipo de retórica da alteridade é essa? Não se trata mais de dizer o outro descrevendo sua fisionomia e seu ambiente, seus exotismos etc. A marca mais forte da alteridade em Desmundo está nesse encontro entre línguas via transliteração e tradução, como podemos verificar na citação acima.
A narração de Oribela, atravessada por diferentes línguas, poderia ser comparada à maldição das diferentes línguas que recaiu sobre a humanidade no episódio bíblico da Torra de Babel (Gênesis, 11). Mas isto não deve ser lido como um argumento em prol da “universal” incomunicabilidade humana. Tal analogia deve ser compreendida e explicitada como contraponto à história e à cultura da colonização do Brasil, que se justificou em boa parte segundo uma “Visão do Paraíso”.
Contra a visão do paraíso, a narração de Oribela antepõe linguisticamente o encontro com outra língua (desmundo) e o inferno de estar circundada por pessoas estranhas e/ou violentas, ambiciosas e/ou incomunicáveis. A força da expressão oral das personagens, tal como se pode depreender da narração de Oribela, que permite o atravessamento de outras oralidades como a de Temericô, é resultado de uma criação que deforma a língua para nomear aquilo que não tem nome: o verdadeiro encontro, o único que vale a pena viver, coisa de tatuar para não esquecer.
[1] GERVÁSIO, Eduardo Vieira. Paraíso e Inferno: imagens do Novo Mundo na tradição colonial e nos romances de Ana Miranda. Goiânia: UFG, inédito. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitstream/tede/3388/5/Tese%20-%20Eduardo%20Vieira%20Gervasio%20-%202013.pdf.