Um poema de Félix de Bulhões me pôs intrigado durante alguns dias. Os versos aos quais refiro-me li, pela primeira vez, em uma das recentes antologias de poesia da Academia Goiana de Letras. Seu título é O Relógio da Casa, datando de 1885, e conta, do ponto de vista de um antigo relógio disposto atrás de uma porta, as transformações que opera o tempo em uma grande casa, palco principal de diversas situações da vida de muitas pessoas.
O poema, rico em sensíveis imagens, vale-se, e aí reside sua característica mais marcante, de um estribilho que aparece ao fim de cada uma das seis estrofes, que diz-nos que o relógio está sempre a repetir seu rifão, mas, em vez do comum tique-taque, faz “sim… não, sim… não, sim… não.” O efeito proporcionado por esse recurso assemelha-se ao que ocorre em O Corvo, de Edgar Allan Poe, isto é, evoca-se um ambiente opressivo porque sujeito a um ritmo atípico que marca o curso do texto. Nesse caso, faz-se sentir, precisamente, a própria passagem do tempo, um tempo irredutivelmente maniqueísta e implacável.
Importa dizer, antes de mais nada, que Antônio Félix de Bulhões Jardim (1845-1887) foi o grande expoente do romantismo literário em Goiás. Entanto haja vivido relativamente pouco, o poeta de Vila Boa, que foi ainda juiz de direito e jornalista, deixou, mesmo que enxuta, excelente obra. Há de sua autoria notáveis poemas, nos quais se mostra inspirado ora pelo sentimento decadentista, o spleen romântico e a idealização amorosa (excetuando-se alguns textos sui generis), ora pelo fervor e desejo abolicionistas próprios de um condoreiro.
Mas aquilo a capturar minha atenção foi a semelhança guardada pelo poema em questão com outro, um pouco desconhecido, de Henry Wadsworth Longfellow (1807-1882), chamado The Old Clock on the Stairs (“O velho relógio nas escadas”), escrito em 1845, ano em que Félix de Bulhões nasceu e 40 antes de O Relógio da Casa. Nos versos de Longfellow, a situação é a mesma: mudanças são engendradas e acompanhadas pelo tempo irrepreensível sobre um microcosmo determinado. Entretanto, o velho relógio soa, desta vez, em lugar de tique-taque, “forever — never!, never — forever!” Porque de métrica concisa, o clima evocado pelos versos do norte-americano é ainda mais expressivo, e o estribilho se confunde, efetivamente, com o barulho do relógio ou, antes, o poema inteiro funciona como uma timepiece (peça, pedaço, parte de tempo), palavra anglófona tão interessante para designar o objeto que marca o passar das horas.
Bom, obriguei-me a ponderar, os poetas brasileiros, e principalmente os do interior do país, não sofriam, em meados do século XIX, influência sensível dos românticos norte-americanos, ainda que Longfellow haja sido um dos maiores. O influxo cultural limitava-se grandemente à França e, em menor grau, à Inglaterra, basta recordar quão significativas foram, para os escritores do Brasil, as obras de Baudelaire e de Byron. Assim pensei.
Contudo, as semelhanças entre os dois poemas se mostram excessivamente intrigantes, embora não apontem, de maneira alguma, plágio e sim uma estranha paridade de ideias. Algumas imagens se refletem com nitidez. Por exemplo, quando o poeta norte-americano alude às crianças que brincam perto do relógio (“There groups of merry children played,/ There youths and maidens dreaming stayed;/ […] Even as a Miser counts his gold,/ Those hours the ancient timepiece told, —/ ‘Forever — never!/ Never — forever!’”) e da mesma forma procede o goiano (“No velho lar paterno, enxame de crianças,/ — gárrula multidão de alegres esperanças —/ […] Já ele estava ali. — pregado na parede,/ […] e vai dizendo sempre e sempre o seu rifão:/ Sim… não, sim… não, sim… não.”) Evidentemente, não se exaurem aí as coincidências. Fossem explicitadas todas, o leitor facilmente enfastiaria-se com tantos versos demasiado entrecortados. Portanto, achei conveniente a íntegra dos dois poemas se encontrar abaixo.
Estive para me sentir em uma narrativa de Jorge Luis Borges, em que há duplicatas de outras duplicatas e já não se sabe com exatidão quem é o autor do Quixote ou de quaisquer livros. Há um ensaio de Borges intitulado A Flor de Coleridge, em que se discute justamente a existência de um espírito maior, amanuense e titereiro da literatura universal. Emerson, citado pelo argentino, coloca: “dir-se-ia que uma única pessoa redigiu todos os livros que há no mundo; tamanha unidade central há entre eles que é inegável que sejam obra de um só cavalheiro onisciente”. Pari passu, Shelley sentencia que “todos os poemas do passado, do presente e do porvir, são episódios ou fragmentos de um único poema infinito, erigido por todos os poetas do orbe”. Ou seja, defende-se que todos os autores são apenas um. Diante das semelhanças estranhas a que conduziam os ponteiros dos relógios de Longfellow e de Bulhões, por pouco não me tornei partidário dessa ideia a priori pitoresca.
Precisava saber, com certeza, se não havia contato do poeta goiano com a obra de Longfellow. Foi então que, depois de pesquisa, encontrei digitalizada uma edição do Correio Official de Goyaz, periódico regional em que Bulhões contribuía, datada de 1876. No exemplar em questão, o juiz de direito é inclusive citado em uma nota marginal. Entretanto, mais importante é a seção de poesia em que consta, para minha surpresa, um poema de Henry Wadsworth Longfellow, seu Psalm, sem indicação de quem verteu-o para o português. Estava aí um indicativo sólido de uma intersecção entre os autores em questão, e mesmo desconfiei de que aquele houvesse traduzido este.
Restava, por último, à procura de um derradeiro e obscuro elo, encontrar o Poesias, único livro de Félix de Bulhões, editado algum tempo depois de sua morte e, um século depois, em 1995, reeditado. Após peregrinar por algumas bibliotecas públicas, achei-o, e mais uma vez me surpreendi. Há um subtítulo em O Relógio da Casa que a antologia da Academia Goiana de Letras omite de forma infeliz. Entre parênteses, pois, lê-se “Imitação de Longfellow”. Enfim a pulga que morava atrás de minha orelha renunciou à função e o mistério solucionou-se.
Bastante notável, cumpre dizer, é Bulhões valer-se da palavra “imitação”, com rara dignidade. Em verdade, seu poema não é uma simples cópia, e sim emulação bastante feliz e homenageante de Longfellow. Julgo desnecessário diferenciar pormenorizadamente essa atitude daquela de um plagiador. De retorno ao ensaio de Borges, que se debate sobre a consciência maior por trás das obras da literatura, o autor diz-nos que “para as mentes clássicas, a literatura é o essencial, não os indivíduos. George Moore e James Joyce incorporaram em suas obras páginas e sentenças alheias; Oscar Wilde costumava presentear enredos para que outros executassem; ambas as condutas, embora superficialmente contrárias, podem evidenciar um mesmo sentido da arte. Um sentido ecumênico, impessoal”.
O arremate do ensaio é bastante propício para a análise do exposto em minhas breves linhas, e com ele igualmente as dou fecho. “Uma observação última. Aqueles que minuciosamente copiam um escritor, o fazem impessoalmente, o fazem porque confundem esse escritor com a literatura, o fazem porque suspeitam que separar-se dele em um ponto é separar-se da razão e da ortodoxia. Durante muitos anos, eu acreditei que quase toda a infinita literatura estava em um homem. Esse homem foi Carlyle, foi Johannes Becher, foi Whitman, foi Rafael Cansinos-Asséns, foi De Quincey.”
The Old Clock on the Stairs
(H. W. Longfellow)
Somewhat back from the village street
Stands the old-fashioned country-seat.
Across its antique portico
Tall poplar-trees their shadows throw;
And from its station in the hall
An ancient timepiece says to all, —“Forever — never!
Never — forever!”Half-way up the stairs it stands,
And points and beckons with its hands
From its case of massive oak,
Like a monk, who, under his cloak,
Crosses himself, and sighs, alas!
With sorrowful voice to all who pass, —“Forever — never!
Never — forever!”By day its voice is low and light;
But in the silent dead of night,
Distinct as a passing footstep’s fall,
It echoes along the vacant hall,
Along the ceiling, along the floor,
And seems to say, at each chamber-door,—“Forever — never!
Never — forever!”Through days of sorrow and of mirth,
Through days of death and days of birth,
Through every swift vicissitude
Of changeful time, unchanged it has stood,
And as if, like God, it all things saw,
It calmly repeats those words of awe, —“Forever — never!
Never — forever!”In that mansion used to be
Free-hearted Hospitality;
His great fires up the chimney roared;
The stranger feasted at his board;
But, like the skeleton at the feast,
That warning timepiece never ceased, —“Forever — never!
Never — forever!”There groups of merry children played,
There youths and maidens dreaming strayed;
O precious hours! O golden prime,
And affluence of love and time!
Even as a Miser counts his gold,
Those hours the ancient timepiece told, —“Forever — never!
Never — forever”From that chamber, clothed in white,
The bride came forth on her wedding night;
There, in that silent room below,
The dead lay in his shroud of snow;
And in the hush that followed the prayer,
Was heard the old clock on the stair, —
“Forever — never!
Never — forever!”All are scattered now and fled,
Some are married, some are dead;
And when I ask, with throbs of pain.
“Ah! when shall they all meet again?”
As in the days long since gone by,
The ancient timepiece makes reply, —
“Forever — never!
Never — forever!”Never here, forever there,
Where all parting, pain, and care,
And death, and time shall disappear, —
Forever there, but never here!
The horloge of Eternity
Sayeth this incessantly, —
“Forever — never!
Never — forever!”
O Relógio da Casa
(Antônio Félix de
Bulhões Jardim)Ali está, de há muito tempo — estático, sombrio,
altivo, calmo, frio,
ali atrás da porta, há (creio) quarenta anos.
Passou e foi-se o tempo… o tempo mudou tudo,
mas ele ali ficou. — Teimoso, carrancudo,
nos seus órgãos fiéis, do tempo soberanos —
foi repetindo sempre e sempre o seu rifão:
Sim… não, sim… não, sim… não.Era eu criança ainda. — A vida começava,
ria, tumultuava…
No velho lar paterno, enxame de crianças,
— gárrula multidão de alegres esperanças —
era um festivo albor de nova geração.
Já ele estava ali. — Pregado na parede,
a nossa vida, gota a gota e mede
e vai dizendo sempre e sempre o seu rifão:
Sim… não, sim… não, sim… não.A nova geração cresceu… cresceu… cresceu
e cresci também eu.
Um dia descobri que tinha um coração…
— coisa muito vulgar, que então me surpreendeu.
Em cima pus-lhe a mão:
batia e palpitava. — A pêndula constante
respondia ao pulsar da víscera incessante…
mas repetindo sempre e sempre o seu rifão:
Sim… não, sim… não, sim… não.Uma vez, era o lar em gala se arreava.
Alguém lá se casava:
era um dia feliz de risos e de festas.
E outras núpcias depois vieram com estas.
Ele, ali no seu canto, imóvel testemunha,
o martelo fatal e a campainha empunha,
e, em doze vibrações sonoras, advertia
“… que tudo vai passando em fria sucessão,
a dor como a alegria…
um dia se afundou… além vem outro dia!”
E assim dizia sempre e sempre o seu rifão:
Sim… não, sim… não, sim… não.Depois a cena inversa. — A casa era fechada
e a câmara enlutada.
Lágrimas dentro e dó, — o pranto ali corria
sobre os restos mortais do que há pouco vivia;
só ele, no seu canto, indiferente ao luto,
estático ao vibrar os mesmos sons pausados
que pareciam ser uns dobres a finados,
e repetindo sempre e sempre o seu rifão:
Sim… não, sim… não, sim… não.Assim resta ele só, impassível, sombrio,
altivo, calmo, frio;
ali naquele canto, há (creio) quarenta anos…
O tempo vai voando… tempo muda tudo:
mas ele fica ali. — Teimoso, carrancudo,
nos seus órgãos fatais, do tempo soberanos,
e sempre a repetir seu eterno rifão:
Sim… não, sim… não, sim… não.
Há alguma editora que pretende relançar Poesias, o único livro de Félix de Bulhões? Gostei muito do texto e de ser apresentado ao poeta, além do exercício de literatura comparada com uma tradição poética a priori longínqua.
Por minha vez, fica minha contribuição na adequação da construção da seguinte oração: “Entanto haja vivido relativamente pouco, o poeta de Vila Boa…”, talvez fosse melhor trocar ‘Entanto’ por Embora.
Olá, Gael Rodrigues. Até onde tenho conhecimento, não existe a intenção de reeditar o Poesias, o que é uma pena, de fato. Grato pela contribuição. Abraço.