Há muita música por aí. E muita irrelevância. Sempre houve? Antes tinham as rádios que botavam pra tocar o que eles queriam. Mas a gente lia as revistas, os jornais e comprava os discos. Agora os discos já nem valem tanto assim porque quase ninguém tem paciência de ouvir um disco inteiro, de cabo a rabo. Existem os singles. E toda sexta-feira o Spotify tem o radar de novidades pra mim. E na sexta-feira eu descarto o que não gosto, salvo o que gosto. Um carrossel de escolhas musicais.
O ato de ouvir música fica simples de manejar: bom, ruim, bom, ruim. E assim a banda toca. Mas às vezes uma banda toca e esmaga alguns conceitos. E rompe o rotineiro ato de pinçar música boa, música ruim. Porque a música que essa banda faz incomoda o senso comum de sua avaliação cotidiana. Ela extrapola esse conceito. Sempre houve manifestações artísticas assim na música. A quantidade não fez surgirem mais. Curioso: ainda são esporádicas. E em uma sexta-feira dessas meu carrossel travou em uma novidade. Era uma música da banda mineira Lupe de Lupe. Álamo distorcia alto demais, incomodava o fone de ouvido. Mas resvalava em um assunto que no mesmo dia eu matutava: apesar de tantas decepções e desilusões, é preciso achar um jeito de sorrir, “os dentes pra brilhar”.
No streaming, peguei o disco – olhe só – da Lupe de Lupe pra ouvir, botei Vocação desde o início. Frágua começa com barulho de chuva e uma guitarra suave. Depois o som do chimbal escorre junto. Martela. A voz canta. Desafina? Incomoda. Assim como os versos: “Criando um martelo num lugar sem prego / Criando um problema pra mais tarde resolvê-lo”. A música fala dos quatro elementos, mas fogo e água preenchem o texto, apesar de o vocalista parece ficar sem ar por soltar versos um atrás do outro. Quase perde o fôlego. O som da banda muitas vezes está mais alto que a voz, mesmo gritando. Incômodo.
A música seguinte é Midas. E já nas primeiras linhas percebo que o tema é simplesmente o maior incômodo despejado em nossas vidas atualmente. O governo. A tragédia da vida política brasileira estava ali resumida. De 64 até hoje.
“O belo visto cidadão de porte de armas o iria adorar
O sujeito prudente de pistola na mão, a sociedade irá organizar
E se é imprudente que todo vivente possa legalmente se matar
É pelo cifrão, desde o idoso à nação que iremos nos nivelar
E pela devoção ao Deus cidadão, tudo irá se ajeitar
Pois o Deus que nos fala, por lei, na Bíblia Sagrada, não matarás
É o mesmo Deus que permite a arma, a violência, a insanidade, a
segregação, o estupro, o abandono e a absolvição de Barrabás”
Eu já entendia os motivos daquele disco com guitarras mais altas do que o normal. Fugindo do que a receita das mixagens dos produtores musicais manda. Entendi aquele canto que urra, ou que quando é suave soa desajeitado. Imperfeito como todos somos. Imperfeito como os dias de hoje. Que incomoda, mas estão aí. E aqui. E transcendem às vezes em beleza, como só a arte é capaz. Precisamos de mais arte.
O “Brasil quer mais”. Todos queremos. Mas infelizmente não é pra qualquer um. Brasil Quer Mais é o nome de uma das músicas do disco Vocação, da Lupe de Lupe. E seria bom se você pudesse ouvi-la. E se não gostar, talvez eu o julgue como um bolsominion. E você vai me julgar um comunista, esquerdopata. Nós nos julgaremos. Assim como O Brasil Quer Mais, da Lupe de Lupe, julga. E sabe que será julgada:
“E a gente vai assim, procurando os erros uns nos outros
Sem ver os nossos próprios erros e contradições
Mesmo agora, você está tentando achar um furo no meu raciocínio
Elaborando uma forma de usar o que eu canto contra mim”
A resenha do disco Vocação, da Lupe de Lupe, já está ficando longa. Assim como é longa a música O Brasil Quer Mais” – que você devia ouvir.
“Infelizmente é música longa
Infelizmente não é aquela pra fugir da realidade
É aquela pra lutar com a realidade”
Lupe de Lupe não está nas redes sociais. Para encontrar a banda vá ao site oficial (http://www.lupedelupe.com.br/
“Não há paz
Há corpos de barro no céu
Tão limpos, vazios e frágeis
Muito maiores que eu”
Não somos santos. Mas podemos cantar. E quem sabe conseguir tocar (incomodar) alguém. Como pregam os versos da canção Voz:
“Deus me deu essa voz pra que eu pudesse
Fazer o mesmo que São Patrício um dia fez
E que Brâman esteja à minha esquerda
E que Guaraci esteja à minha direita
E que Shangdi esteja à minha frente
E que Alá esteja às minhas costas
E que Cristo esteja na boca de todos que falarem de mim
Na mente de todos que pensarem em mim
Nos olhos de todos que olharem pra mim
Nos ouvidos de todos que me ouviram sequer uma vez
Que Deus esteja no coração
De todas as pessoas que a minha voz tocar
A voz de Deus”
E vale a pena cantar. Vale a pena tentar ajudar quem precisa. Vale a pena tentar tocar alguém. Estamos cansados e, nesses dias tétricos, pode parecer uma luta inglória. Mas existem lutas sem fim. Até que fique com a Lâmina Cega:
“Mas não perca a esperança
O inimigo pode até te matar
Mas a vida te deu muita força
Pra lutar
E alguém vai saber
E alguém vai cantar
E alguém vai lutar
Por todas as coisas que você um dia lutou
E no fim vai vencer, vai vencer
A espada que luta contra o mal
Morre com a lâmina cega”
Jorge Luis Borges disse que “la felicidad no necesita ser transmutada en belleza, pero la desventura sí”. É o que – repleto de distorções, ruídos, melodias sutis e melancólicas, outras sublimes – Lupe de Lupe conseguiu com seu disco Vocação.