[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Canção da noite
A noite está tão quieta!
Alguém passeia a esta hora?
Não ouço nada. Um silêncio de chumbo
torna audível meu pensamento.
A noite me atrai, sereia de luto
me espiando da janela.
As estrelas são meus olhos
de seduções imantados.
Tenho vontade de andar, andar…
até sentir as pernas trôpegas
e as pálpebras pesadas de sono,
para dormir ao relento
como os boêmios do mundo.
A lua fugiu do céu
e uma cortina negra de nuvens
escondeu a Via Látea.
A noite me chama,
murmurando exóticos segredos.
Um vento frio, arquejante, vem da serra
com um cheiro de terra molhada.
Eu amo e temo infantilmente a noite,
a velha noite sem limites,
que parece estranha amante
a me oferecer numa taça
o ópio maravilhoso do sonho.
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[2]
Goiás
Goiás… que nome largo, longe!
Se o pronuncio da janela
para a noite infinita,
o vento toma-o da minha boca
e o leva aos confins da serra azul.
Lamento, suspiro, convite,
dor gostosa que arrepia os cabelos.
Goiás é o nome – calor, tão materno
qual sombra de mangueira.
Balanço de rede de buriti
no rancho de palha.
Brisa nos canaviais,
cantiga de roda em noite de lua,
aboio de vaqueiro nos gerais,
trovão longínquo percutindo
na minha nostalgia.
E é muito Brasil,
assim novo e antigo,
primitivo, alegre e triste,
com suas tolices enxutas, ágeis,
lirismo fundo e manso,
admiração irônica, engraçada,
amor calado, espinhoso,
ternura desajeitada e fremente
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[3]
Grave elegia
Quando me acho triste
(e isto acontece muito),
gosto de sair pelas ruas
qual um homem sem fichas,
vagamente deslembrado
de todos os compromissos.
Não tenho medo dos pobres
e dos vagabundos anônimos
que dormem nos bancos da praça.
Sento-me ao lado deles,
olho as árvores do jardim
e sonho com as matas virgens,
os rios escuros, selvagens,
viajando profundamente.
Se me atropelarem na rua
os ombros, rostos, gestos aflitos,
levanto os olhos sem susto
e vou sair no mar.
Enquanto os pescadores atentos
colhem peixe das águas,
estou pescando mistérios
para meu repasto.
As coisas só me penetram
quando sou livre e humilde.
As ondas, as músicas mais simples,
as longes, íntimas palpitações
de um mundo sem idade,
vêm aninhar-se no meu peito
como asas fluídicas da vida.
Depois vou-me embora,
leve e corajoso.
Também a luta de todos
já me arrastou às vezes.
No topo dessas tormentas
respirei as noites do ódio
sobre rios de escravidão.
Mas eu não quero importância
nem deitar falsa grandeza
sobre meus pobres irmãos.
Apenas quero existir naturalmente,
sem medo nem vergonha.
É um conforto sentir
que nunca me agradaria
ser general, estadista, chefe,
ou diretor das ondas hertzianas.
Simplesmente quero ser um homem,
pois a vida é muito séria
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[4]
Epitáfio
A pena que sôfrega
deslizava no papel
parou de súbito
como se dissesse
num reparo triste:
Para que tudo isso,
se ela não volta mais?
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[5]
Um encontro com a poesia
Na varanda em penumbra
do casarão tranquilo da fazenda,
a luz trêmula do lampião
fazia dançar as sombras na parede,
brincando de assombração.
A música monocórdia dos sapos,
nos úmidos beirais,
embalava a luz das estrelas,
das louras deusas inatingíveis.
E enquanto a prosa amiga cochilava
na sonolência de assuntos familiares,
minha dor,
feita de inquietações e incertezas,
desmanchava-se aos afagos capitosos da poesia,
da poesia que jorrava límpida e virginal
do seio primitivo das coisas simples e eternas.
José Décio Filho nasceu em Posse (GO) em 8 janeiro de 1918 e morreu na cidade de Goiás no dia 4 de julho de 1976, aos 58 anos. Fez o primário na sua cidade natal e o secundário no antigo Lyceu de Goiás. Trabalhou no IBGE na cidade do Rio de Janeiro. Na década de 1940, atuou como jornalista em O Popular, Folha de Goyaz, Tribuna de Goiás e foi colaborador da Revista Oeste. Em 1960, ocupou cargo no Departamento Estadual de Cultura. Escreveu um único livro, Poemas e elegias, que teve três edições. A primeira, de 1953, reúne poemas escritos entre 1943 e 1950 e foi publicada pela Bolsa de Publicações “Hugo de Carvalho Ramos” sob a responsabilidade da Associação Brasileira de Escritores, seção de Goiás, da qual foi fundador. A segunda edição, de 1979, além de ampliada, estampa textos apreciativos de Haroldo de Britto Guimarães, Oscar Sabino Júnior e Bernardo Élis, sendo publicada sob os auspícios da extinta Caixa Econômica do Estado de Goiás. A terceira, de 2014, publicada pela editora Caminhos, é a mais completa, pois reúne os poemas dispersos. A despeito dessas edições, a poesia de Décio Filho ressente de estudos mais rigorosos e abrangentes. Oscar Sabino Júnior, procurando analisar aspectos de linguagem e tendências estética e temática, considerou que o autor “recorre a antíteses e a paralelismos ou a paradoxo como recursos metafóricos. A partir de 1945 sua poesia perde certa inflexão das escolas pré-modernistas e começa o autor a assimilar com mais consciência as liberdades formais e as novas técnicas de expressão implantadas pelo Modernismo. A tonalidade fundamentalmente lírica, de caráter confessional, torna José Décio Filho o poeta mais cosmopolita e universal de seu tempo em Goiás, mostrando-se a cada ano mais propenso ao transcendente, onde há fortes traços do pessimismo, de tonalidades românticas, que o conduzem a uma funda angústia. Na poesia goiana ele foi, decerto, a manifestação mais rica do lirismo.”