Não importa a noite, seja ela qual for, ou com ventos, raios e trovões, ou com lua cheia, ou com céu luminoso e vaga-lumes errantes, ou com formas tenebrosas, ou com o calor que sufoca e lateja – aqui, nesta casa grande e surpreendente, no Parque dos Cisnes, onde me sinto feliz diante da janela aberta pela qual admiro as sibipirunas fincadas próximas ao muro, cujas ramas dançam ligeiramente sob o embalo da brisa distraída.
Assim, não importa qual seja a noite, quando a madrugada avança sobre o relógio e há um silêncio que revela o inseto que rói as raízes, silêncio acompanhado de uma mansidão, na qual se ouve a queda de uma folha que, leve e seca, desidratada, cai em rodopios até repousar docemente sobre a grama e, exatamente nesse momento, eu aumento os decibéis do aparelho, esperando que todos os seres vivos circunscritos à propriedade ouçam o concerto – o mais delicado e lírico entre todos os que exijam um piano e sopros de doce e serena amargura, de tão melodiosa que é a poesia desse Adagio assai…
As bestas urbanas – essas que nos espreitam de todos os lados, babando a sua ignorância e o seu rancor por conhecerem apenas dois acordes rudes – não toleram Ravel, mas, quanto mais o ouço, acredito que esse concerto foi escrito para os passarinhos, aves elegantes e harmoniosas que nunca frequentaram academia de música nem tiveram aulas de solfejo.
A sonoridade do oboé imita mesmo qual canto de esplendorosa ave?
Aqui, no Parque dos Cisnes, eles ouvem Ravel na madrugada e bicam quirera ao albor. Passarinhos que sempre deram sentido aos meus olhos e à minha vida. Passarinhos felizes, como a moça que bebe café em Paris, do jeito que a descreve Cassiano Ricardo no seu poema. De certo modo, como o cronista que esparrama a sua sintaxe…
Esses passarinhos que dormem entre as folhas das árvores perto das janelas, essas pombas-do-bando ariscas que se escondem no alto da mangueira, essas rolinhas, esses sabiás, beija-flores, canários, joões-de-barro, tizios, garrinchas, coleiros, pássaros-pretos, pica-paus, sanhaços, tucanos, urubus, bem-te-vis, maracanãs, periquitos, anuns, almas-de-gato, as enigmáticas corujas… – todos estes seres alados, os pequenos e os grandes, que respiram o mesmo ar das plantas prisioneiras dos xaxins que costumam rodar ao sabor do vento, como se fossem baianas de escola de samba – essas samambaias que animam a varanda, tal como se desfilassem no carnaval.
Pássaros formosos, ligeiros e engraçadinhos são essas avezinhas que voam pra lá e pra cá aqui no condomínio, sob o manto do dia e o calor do sol.
São Francisco, o monge de Assis, poderia revelar aos que veem o mistério com certa desconfiança:
“Os pássaros pousam nos meus braços e nos meus ombros porque a bondade é uma virtude que não preenche o coração dos homens.”
Antes que alguém me acuse de que faço variações grosseiras das crônicas de Rubem Braga, pois, como todos sabemos, ele também adorava escrever sobre passarinhos e, segundo os seus chegados, era um entendido em ornitologia, eu me defendo apoiando-me num argumento que ele elaborou e do qual nunca me esqueci, embora não lembre mais a página em que ele o expressou ou, afinal, fui eu que o deduzi?
“Os passarinhos são de quem pegá-los.”
Se é assim mesmo, nada mais justo: ele pegou os dele, que não foram poucos – e agora eu pego os meus, e os guardo todos eles nesta crônica, livres e alegres, para poder sempre me lembrar de seus rasantes, os meus lindos passarinhos que voejam por aí, aproveitando as belezas do dia.
Amo a escrita desse querido Luis Araujo! Que leveza de crônica! Quase uma folha vindo ao chão, aos rodopios… quase um voar alto, em roda, de urubus…
Adorei, me transportei pro Parque dos Cisnes.
Beleza e leveza