Existe uma tradição na crônica literária brasileira – “tradição” digo por minha conta, pois que me tenho apenas dois textos assim no horizonte – de vir o cronista a falar da falta de assunto. Em O Exercício da Crônica, publicado na coletânea Para Viver um Grande Amor, de 1972, vemos Vinicius de Moraes acender um cigarro, olhar através da janela, ligar para um amigo, assistir ao noticiário em busca “do pitoresco e do irrisório” (vejam que já estou misturando os cronistas: essa linda definição é do Fernando Sabino) que o cotidiano fornece à crônica, ou que dele arrancamos.
Assim é que acontece de, quando o fato não concede o ar da graça, e muitas vezes não concede, recorrer-se ao assunto da falta de assunto. Vinicius afirma que a estratégia é bastante gasta – viram como minha intuição sobre tradição está correta? –, mas acredita que daí pode surgir o inesperado. Não estou prometendo nada com isso, apenas queria dizer que, se faltei com minhas palavras nonada nos últimos dois meses, não foi por fata de assunto nem de cigarro. Afinal, neste 2019, o Brasil promoveu o absurdo a fato corriqueiro.
E isso tem afetado muitos de nós, criando todo tipo de indisposição, desesperança e raiva. Deixar de escrever momentaneamente foi resultado desse estado geral de sentimentos ruins. Drummond dizia, ele também lá na década de 70, numa crônica iluminadora (graças à falta de assunto), da “dificuldade em abranger a cena com o simples par de olhos e uma fatigada atenção” e se admirava como tudo se repetia na linha do imprevisto, um imprevisto sucedendo outro, “num mecanismo de monotonia… explosiva”. Estivesse vivo, Drummond poderia fazer apenas um ctrl+c e um ctrl+v para falar dos dias que correm.
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Durante muito tempo, antes e depois de defender minha tese de doutorado sobre uma narrativa utópica do século XVII francês chamada As Aventuras de Telêmaco, perguntei-me sobre a utilidade dessa leitura, sobre sua atualidade, sobre sua relevância. Esse romance talvez seja a prova viva de que os clássicos também morrem. O Telêmaco foi o livro mais impresso, comentado, imitado e traduzido na Europa e fora dela durante o século XVIII; foi livro de cabeceira dos revolucionários de 1789; educou os meninos de Jacotot no século XIX; e morreu com o nascimento da dúvida sobre a função da obra de arte – afinal, foi escrito para instruir e agradar, instruir agradando.
Ao longo da pesquisa e mesmo depois de defendida a tese, vislumbrei muitas respostas plausíveis para o trabalho realizado, mas “nunca antes como agora” faz tanto sentido ter estudado um texto cujo objetivo era afirmar que a arte de governar estava no equilíbrio entre conduzir, submeter-se e ser justo. As Aventuras de Telêmaco, escritas entre 1694 e 1699 pelo bispo Fénelon, para educar aquele que seria o sucessor de Luís XIV, extraem sua ideia básica do quarto livro da Odisseia, de Homero. Fénelon fantasia sobre o que teria acontecido se Telêmaco, cansado de esperar a volta do pai, decidisse sair para obter notícias de Ulisses.
Em uma dessas viagens imaginadas por Fénelon, Telêmaco encontra Narbal, um cidadão da ilha de Tiro, e pede a ele que fale sobre sua cidade. Surge assim a oportunidade de conhecermos a figura de um rei injusto, um antimodelo de governante, um personagem que antecipa a noção de distopia literária. Nas palavras de Narbal, Tiro se destacava pelo comércio e pela arte da navegação, mas vinha perdendo seu brilho e sua riqueza em função do governo de um rei ambicioso e cruel.
Pigmalião teria chegado ao poder depois de um golpe em que, assassinando o cunhado, obrigou sua irmã Dido a abandonar a coroa. Apesar de ter alcançado o poder, este rei vivia atormentado pela culpa. Em Tiro, a virtude passava a ser crime porque Pigmalião sabia que o bem não era capaz de sofrer tantas injustiças e infâmias. Mandou prender os bons conselheiros, aqueles que tinham a função de dizer o quanto estava errado. Desconfiava dos estrangeiros com os quais seu reino tradicionalmente negociava, afundando a imagem de urbanidade nas águas do Mediterrâneo. Tudo o preocupava. Não dormia mais do que uma ou duas horas por dia, nunca no mesmo aposento, pois padecia do medo de ser assassinado pelos próprios guardas. Os prazeres inocentes e a amizade gratuita lhe eram desconhecidos. Seus olhos fundos e vagos lançavam um fogo voraz e feroz; tornou-se pálido e magro; e em seu rosto, sempre desajeitado e enrugado, pintavam-se as tristezas que o flagelavam. Por fim, até mesmo seus filhos, que deveriam ser sua esperança, tornaram-se razão para seu terror e os via como inimigos, já que ambicionavam a sucessão.
A vaidade, o medo da verdade, a indolência, o prazer na bajulação e no luxo, o anseio pela glória fútil e, por fim, o mais grave de todos os erros, o desprezo pelo povo foram as principais características desse rei que agia arbitrariamente, sem respeitar lei alguma, nem mesmo a da coerência. Alguns leitores contemporâneos de Fénelon quiseram ver nesta figura o retrato de Luís XIV. Infelizmente, o estado das coisas no país do futuro atualiza um retrato que nem merecia ser tema de crônica. Melhor seria não ter assunto.
Foi um bom capítulo introdutório para seu próximo livro, que já estou aguardando. Um beijo.
Cronicamente atual. Excelente o texto. Abraços,
Nada a acrescentar somente aplaudir…mas caiu como uma luva e pensei na serie Games of Trhones