O escritor francês André Gide (1869-1951) costumava se autodefinir como uma “natureza dividida”, que só conseguia harmonizar as personalidades opostas que carregava dentro de si por meio da criação artística. Nunca saberemos de fato se a literatura realmente o libertou das próprias contradições, mas é inegável que ela foi o instrumento para que o autor exorcizasse suas obsessões e seus traumas. Contudo, se, por um lado, a obra de Gide, que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1947, em muitos aspectos, é abertamente inspirada na experiência pessoal do escritor, ela não pode, por outro lado, ser encarada como uma expressão meramente confessional, uma vez que manifesta um claro e consciente projeto literário e estético.
Da vida privada de Gide, sabe-se em resumo que ele nasceu no seio de uma família chefiada por um pastor protestante, foi criado sob os rigores da religião, casou-se cedo com uma prima e mais tarde assumiria publicamente sua condição de gay. De uma forma ou de outra, transfigurados pelo talento criativo do autor, esses dados de sua trajetória transparecem nos livros que publicou ao longo de sua extensa carreira literária. A começar por um de seus romances mais emblemáticos, O Imoralista, que veio a público originalmente em 1902.
Nessa obra, Gide deixa evidente a inspiração em sua própria autobiografia: como ele, Miguel, o “imoralista” com nome de anjo do título, é um jovem que cresceu em um ambiente puritano e severo que casa-se com Marcelina, por quem nutre um amor fraterno, mas destituído de qualquer apelo sensual. Descobrindo-se tuberculoso, Miguel parte para a África (outro ponto coincidente com a vida de Gide) onde busca se convalescer ao calor do sol. Naquela terra quente e exótica, ele finalmente conhecerá o prazer no corpo de um adolescente árabe. O despertar erótico do personagem representará uma forma de libertação – e ele passará a confrontar todo tipo de conformismo e preconceito, numa atitude radical e egocêntrica que terá como trágica consequência o sacrifício de Marcelina e do filho que ela carrega no ventre.
A ousadia da trama de O Imoralista escandalizou o público mais conservador da Europa, que, no entanto, acolheria de forma mais calorosa o romance seguinte do autor, A Porta Estreita, publicado em 1909. O enredo, novamente, traz elementos claramente autobiográficos – a ponto de alguns críticos o classificarem como uma espécie de “autobiografia romanceada” – e aprofunda a discussão em torno da fé cristã, tema recorrente na obra de Gide.
O livro narra a história de Jêrome e Alissa, dois primos apaixonados um pelo outro desde a infância – aqui a referência à relação entre Gide e sua prima Madeleine Rondeaux é mais do que explícita, como também o austero ambiente familiar dos protagonistas, criados sob os rígidos princípios da religião protestante. A nota dissonante dessa atmosfera marcada por um puritanismo opressor é representada pela mãe de Alissa, uma mulher bela e sensual que logo no início da trama foge com o amante.
Como uma maneira de expressar sua rejeição pela mãe adúltera, com quem se parece muito fisicamente, Alissa passa a adotar uma postura que só vai se radicalizando, marcada por uma devoção exaltada a Deus e pela repressão de qualquer laivo de sensualidade. Essa atitude, evidentemente, acaba por acarretar o sacrifício de sua paixão por Jêrome, a quem oferece em troca um sentimento de amor místico, que implica uma renúncia completa aos desejos da carne.
Gide retirou o título desse livro de uma passagem do Evangelho que diz “Porfiai pela porta estreita” (Lucas, XIII, 24), um alerta de que os caminhos para a salvação da alma, conforme a mensagem cristã, são sempre os mais difíceis. Para realçar sua pureza em detrimento da imagem de pecado evocada pela traição da mãe – e assim garantir a redenção da sua alma –, Alissa torna sua própria existência cada vez mais árdua, sufocando qualquer possibilidade de prazer, até mesmo a leitura de seus poetas preferidos.
Porém, esse extremismo não lhe traz felicidade, mas apenas desespero e solidão. As páginas em que Gide descreve os últimos momentos de Alissa, quando esta, à beira da morte, ao invés de alcançar a exaltação mística com a qual sonhava, só consegue enxergar a “nudez” do miserável quarto onde se isolou voluntariamente do mundo, são de uma crueldade arrebatadora.
Sinfonia do mundo
O amor carnal em confronto com a fé religiosa é de novo o tema de um dos mais belos e tocantes livros escritos por Gide, A Sinfonia Pastoral, cuja primeira edição foi lançada em 1919. A trama começa narrando o encontro de um pastor protestante suíço com Gertrudes, uma jovem órfã e cega, durante o velório da tia da garota, sua única parente no mundo. Comovido com a triste condição da adolescente, ele a leva para a sua casa, apesar da manifesta oposição de sua mulher, já sobrecarregada com os afazeres domésticos e os cuidados com os filhos pequenos do casal.
Imbuído dessa missão salvadora, o pastor encarrega-se pessoalmente da educação de sua protegida. Aos poucos, a jovem que parecia também sofrer de alguma deficiência mental, comportando-se como um bicho do mato, revela-se uma pessoa inteligente e perspicaz. O pastor, de sua parte, ao mesmo tempo em que estimula a capacidade intelectual de sua discípula, esforça-se em preservar a inocência daquela que, por força das circunstâncias, ficou boa parte de sua existência isolada do contato com os outros.
Para tanto, ele descreve o mundo para aquela garota destituída de visão com se fosse revestido com as tintas e a poesia evocadas pela Sinfonia Pastoral, de Beethoven, a qual ela tem a chance de ouvir pela primeira vez durante um concerto numa cidade vizinha. O mundo que o religioso pinta, também inspirado nas passagens do Evangelho em que Jesus exalta a força do amor, é isento de pecado, um paraíso terreno onde só reinam a bondade e a alegria.
O sentimento que o pastor nutre por Gertrudes, no entanto, está longe de ser inocente como o universo que ele retrata, a ponto de ele fazer de tudo para afastar dela seu próprio filho, Jacques, que também se apaixona pela jovem. Quando Gertrudes recupera a visão, depois de uma cirurgia bem-sucedida, finalmente vê o desejo estampado na face daquele que fora seu mentor. E então compreende que o mundo real é contaminado pela maldade e pelo pecado, um mundo muito mais próximo daquele que Jacques, que ordenara-se padre católico num gesto de revolta contra o pai, lhe descrevera no hospital, enquanto lia as epístolas de São Paulo nas quais o apóstolo adverte sobre as tentações que ameaçam a salvação da alma. Entre o céu e a terra, o ser humano, nas histórias de Gide – este autor impiedoso –, parece não ter outra escapatória, a não ser a desesperança e a desilusão.
Moedas falsas
De todos os livros publicados por Gide, o mais ambicioso sem dúvida é Os Moedeiros Falsos, romance editado em 1926 e que lhe custaria quase sete anos de elaboração. Durante todo esse período, Gide trocou longas cartas, sobretudo como o escritor René Martin Du Gard, a respeito da composição da obra, uma espécie de grande afresco da Paris pós Primeira Guerra Mundial.
Neste livro, Gide se esforçou para subverter as regras do romance realista – característica que condenava, por exemplo, no épico Os Thibaut, de Du Gard (leia sobre este romance em http://ermiracultura.com.br/2017/10/09/a-marcha-da-desrazao/). Ao invés de uma narrativa linear, que pretendia uma verossimilhança que sempre lhe parecia “artificial”, Gide optou por estruturar o romance a partir de uma variedade de tempos e pontos de vistas diferentes, resultando em um universo multifacetado e complexo, como, afinal, é a própria vida.
Para muitos críticos, Os Moedeiros Falsos pode ser considerado um “romance da adolescência”, não só por ter adolescentes como seus personagens principais, mas também por tratar de questões típicas dessa fase da vida, como a recusa do passado, a revolta contra qualquer tipo de autoridade (incluindo a paterna), a exaltação do indivíduo. Mas no romance, como bem nota a crítica Geneviève Idt, num estudo sobre a obra, a adolescência também pode ser encarada como um “estilo de vida”, porque alguns tipos, a exemplo do escritor Édouard, já com 38 anos, se comportam como adolescentes não pelo fato de que se recusam a amadurecer, mas porque se negam a aceitar os valores de uma sociedade hipócrita e decadente – nesse aspecto, Gide deixa claro as influências das suas leituras de Nietzsche, com sua proposta de transvaloração de todos os valores.
Como em O Imoralista, Gide também trata abertamente do tema do homossexualismo nessa obra – e de uma forma que certamente ainda causaria escândalo se o livro viesse a público nos dias de hoje.
O autor narra com a maior naturalidade o relacionamento entre o já citado Édouard e o seu sobrinho Olivier, um adolescente de 17 anos. Aliás, a história de amor entre eles é a única bem-sucedida no romance. Por outro lado, o casamento é mostrado como uma instituição falida, que só acarreta o desprezo, a incompreensão e o ódio entre os cônjuges, além de rebaixar a mulher a uma posição subserviente, como uma escrava.
Além de Édouard e Olivier, outros personagens homossexuais aparecem na trama, como o Conde de Passavant, um aliciador de efebos que, em alguns aspectos, lembra o barão de Charlus de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. A eles, se junta uma fauna diversificada de tipos como o jovem Bernard, um estudante rebelde que foge de casa depois que descobre que é filho bastardo; Vincent, um médico arrivista que engravida uma mulher recém-casada com outro homem e a abandona; o velho La Pérouse, que à beira da morte passa a descrer em Deus; a jovem Sarah, uma garota que se pretende passar por avançada, mas acaba caindo na vulgaridade, entre outros.
Já os “falsos moedeiros” do título são um bando de garotos de famílias burguesas – entre eles, George, irmão de Olivier –, que praticam, por diversão, uma série de delitos, entre eles o de distribuir moedas falsas e cujas pequenas malvadezas acabarão tendo conseqüências trágicas ao final da trama. No comando desses delinquentes juvenis, está o diabólico Strouvilhou, que adora professar o seu niilismo e o seu desprezo pelas convenções, uma pose contestatória que não resiste, no entanto, a um posto lucrativo que lhe é oferecido pelo conde de Passavant. Em resumo, a sociedade parisiense que Gide descreve em seu romance de maior envergadura equivale a uma nota falsificada, cuja aparência pode até enganar os incautos, mas que não resiste a um exame mais profundo, que escancare o que ela esconde de hipocrisia sob um manto de respeitabilidade.
Gostaria de receber as notificações desta revista
Obrigada, Cristiane. Vamos enviar!