Da variada galeria de personagens criados pelo gênio de Fiódor M. Dostoiévski (1821-1881), um dos mais fascinantes é Ivan, o intelectual angustiado de Os Irmãos Karamazóv. Não seria exagero dizer que Ivan – cujo racionalismo é contraposto ao misticismo religioso do seu irmão caçula, Aliocha, e ao comportamento passional e desregrado do primogênito dos Karamazóv, Dimitri – atua como uma espécie de alter-ego do próprio Dostoiévski, por meio do qual o autor russo deu vazão a muitas de suas inquietações e também manifestou sua visão crítica e desencantada da modernidade.
Uma das passagens mais emblemáticas das angústias dostoéviskianas nesse romance monumental é, sem dúvida, a intitulada “O Grande Inquisidor”. Nela, Ivan narra um sonho, que ele denomina de “poema”, a seu irmão Aliocha. A história dessa viagem onírica é a seguinte: na Espanha do século XVI dominada pela Inquisição, Jesus Cristo volta à Terra. Nada anuncia essa segunda descida de Cristo ao mundo humano – nem anjos, nem trombetas, nenhum sinal dos céus. Ele simplesmente aparece numa praça de Sevilha e caminha entre o povo. Seu sorriso, seu olhar, sua simples presença são suficientes para o fazerem notado pelos demais: todos reconhecem no mesmo instante a sua identidade divina.
Enquanto a multidão se junta em torno de Cristo, ajoelha-se em volta dele e dá graças por sua aparição, surge na cena uma figura esquálida e sombria. Trata-se do Inquisidor, um ancião de 90 anos. O religioso que preside o Santo Ofício na região também reconhece de pronto Jesus em meio ao povo, mas isso não o impede de ordenar à guarda que o acompanha de conduzi-lo imediatamente à prisão. Os soldados cumprem a ordem sem que ninguém ouse protestar – a multidão, que antes louvava e aclamava o Filho de Deus, silencia-se assim que o pelotão armado aparece e, como um rebanho de cordeiros, abre passagem para os guardas o deterem.
À noite, quando as pessoas se recolhem em suas casas e um silêncio opressor paira sobre a cidade, o Inquisidor, aproveitando-se das trevas para que ninguém o veja, desce sozinho à masmorra onde Jesus fora trancafiado. “Por que vieste nos atrapalhar?”, pergunta-lhe, ríspido. Sem obter uma resposta de Cristo à pergunta, o Inquisidor começa então um longo monólogo em que argumenta que a Igreja fizera um grande trabalho para corrigir o “erro” de Jesus.
“Esqueceste-te de que o homem prefere a paz e mesmo a morte à liberdade de discernir entre o bem e o mal? Não há nada mais sedutor para o homem do que o livre-arbítrio, mas também nada de mais doloroso”, diz o velho Inquisidor a Cristo. Para o religioso, a “culpa” de Jesus foi não ter acatado os apelos da multidão que zombava dele durante seu martírio, exortando-o para que descesse da cruz. Se tivesse cedido ao clamor da plebe, pelo poder coercitivo do milagre, Jesus teria forçado aquela gente a acreditar nele. Mas preferiu conferir-lhes a liberdade de crer ou não.
O Cristo do sonho de Ivan valoriza a liberdade porque acredita que nela repousa a dignidade humana. Porém, o gozo dessa liberdade tem preço. Não se pode pensar em liberdade sem levar em conta a responsabilidade que a condição de ser livre acarreta. Se os seres humanos são livres para decidir, eles também devem arcar com as consequências de suas escolhas e ações.
Por não poder ser desatrelada da responsabilidade, a liberdade, no discurso do Inquisidor, é caracterizada como uma carga pesada e difícil de suportar. Como pedir à multidão, ignorante e covarde, que carregue esse fardo?, questiona ele. Os homens, em sua esmagadora maioria, preferem a paz da sujeição à angústia da liberdade. O desejo mais ardente deles é ter alguém diante de quem se inclinar, uma força incontestada, que os liberte do ônus de ter de decidir sobre si próprios. Por isso necessitam de uma elite que pense por eles, escolha por eles, enfim, que determine o que devem ou não fazer, aquilo em que devem ou não acreditar.
No papel de integrante destacado dessa elite encarregada de conduzir a multidão, o Inquisidor enxerga o seu ofício como o ápice de um longo trabalho da Igreja no sentido de proteger os homens da tentação da liberdade, corrigindo, portanto, o “erro” de Jesus. E essa tarefa nada mais significa, prossegue ele, do que uma forma de “amor”. É porque ama os homens que o Grande Inquisidor se vê na obrigação de privá-los de uma liberdade que, de qualquer forma, jamais teria condição de ser usufruída por indivíduos fracos demais para aguentar o seu peso.
Jesus escuta todo o arrazoado do Inquisidor sem dizer uma palavra. Quando este finalmente se cala, a única resposta que recebe de Cristo é um beijo nos lábios. Perturbado, o Inquisidor abre a porta da cela e ordena que o prisioneiro saia, e Jesus desaparece na escuridão da noite.
Qual o significado desse beijo enigmático?
Na interpretação de Hannah Arendt, no seu livro Sobre a revolução, o silêncio de Jesus durante todo o discurso do Inquisidor e o beijo desconcertante que ele lhe dá ao final não se devem ao fato de que ficara sem argumentos para se contrapor ao homem da Igreja, mas porque Cristo fala a linguagem da compaixão. A linguagem da compaixão se exprime muito mais por gestos do que por palavras. A resposta que Jesus dá ao Inquisidor são sua escuta intensa, o olhar “penetrante e calmo” e o beijo que deixa seu interlocutor atônito. Todos esses gestos são sinais da imensa compaixão que sente por seu algoz, essa alma perdida que tenta justificar a todo custo a opressão que exerce sobre os mais fracos.
O filósofo francês Frédéric Gros, por seu turno, em um ensaio que discute o tema da desobediência, oferece três possíveis razões para o enigma desse beijo. Seria um beijo de perdão, absolvendo o Inquisidor do pecado do orgulho? Seria um beijo de gratidão, no sentido de um reconhecimento do trabalho da Igreja representada pelo Inquisidor na tarefa de “livrar” os homens da angústia da liberdade? Ou seria simplesmente um beijo de revolta, “irônico e mordaz”, um beijo subversivo que exalta a liberdade, apesar de tudo?
O enigma do beijo de Cristo, no sonho de Ivan, também representa o dilema da liberdade. Um fardo ou uma dádiva?
Que belo texto, Rosângela! Articula muito bem essa brilhante passagem de Os irmãos Karamzóv com as reflexões de Arendt e Gros.
Obrigada,Abraão. Um abraço!
Belo texto ! A Rosângela é uma grande jornalista, uma grande crítica literária.Li muito de seus textos quando tinha uma coluna no Popular. Pena que deixou de escrever em jornais. É muito gratificante quando se ler um texto bem feito, bem articulado e inteligente! Parabéns!!!
Caro Silvio Costa, obrigada pelo comentário tão generoso. Um abraço!